A vossa vida nos pertence, porque vocês são parte de nós
Um testemunho directo da Paróquia da S. Cruz em Nampula, sobre a situação dos deslocados de Cabo Delgado, enviado por Pe. Davide de Guidi, pároco desta paróquia que desde o mês de Junho, com a Caritas e outras organizações governamentais e humanitárias procura acompanhar o sofrimento deste povo ferido.
«… Até ao momento, já chegaram 3.000 pessoas ao território da paróquia, mas em todo o território do Norte de Moçambique calcula se que existam mais de 250.000 deslocados. Novas famílias continuam a chegar, pessoas exaustas da viagem com uma profunda tristeza no coração por terem perdido seus bens, por saberem que suas casas foram queimadas, por terem deixado suas terras e por terem visto os seus entes queridos sequestrados ou massacrados a causa dos violentos ataques que “terroristas”, em nome da religião, estão flagelando o Norte da província de cabo Delgado. A dor aumenta quando contam que não puderam enterrar os seus familiares e amigos devido ao perigo de serem mortos eles próprios.
Por isso, como paroquia, envolvemos os nossos jovens a levarem a sério os seus coetâneos que chegam feridos no seu espírito e nos seus sonhos. Convidamos as nossas mães paroquiais, que embora vivam na pobreza, a partilhar a roupa da sua família com quem nada tem. Estamos a tentar de fazer da paróquia um jardim aberto da caridade, da escuta, do cuidado e do acolhimento. Acreditamos que somente encontrando-se e colocando-nos ao lado deles, partilhando as tristezas e as esperanças, iremos ser cristãos credíveis.
Agora vou contar-vos alguns factos trágicos, infelizmente verdadeiros, que ouvi enquanto visitava estas famílias.
Lembro-me do caso de uma garota chamada Ancha que conseguiu escapar quando foi sequestrada por esses “insurgentes”. Ela nos olhou com olhos tristes e ainda assustada. Não tendo coragem de falar, os seus familiares nos contaram que seu irmão de 13 anos foi sequestrado, assim como a sua irmã com seu bebé. Eles nos contaram que quando fugiram dos ataques, ficaram sete dias no mato sem comer, tentando alimentar-se com tubérculos amargos que muitas vezes faziam mal à saúde.
Conheci uma senhora de 85 anos que, apesar do que passou, teve a coragem de sorrir para mim sem dentes nenhum; ela me disse que foi forçada a fugir e permanecer na floresta por vários dias sem nada.
Em outra família, um jovem nos contou que seu irmão havia sido morto junto com 51 outras pessoas, quase todos jovens, apenas pelo fato de serem cristãos e não quererem lutar ao lado deles. A sua mãe, presente a conversa, nos escutou em silêncio.
Também fiquei impressionado com a história de uma menina de dois anos chamada Zainabo, que, quando os terroristas armados chegaram de manhã cedo na sua aldeia, todos fugiram para se proteger, mas ela não se deu conta e continuou a dormir. A sua irmã, que já tinha conseguido esconder-se e vendo que a menina estava desaparecida, resolveu voltar para a casa a buscá-la. Graças a Deus ela conseguiu salvar a menina antes que a casa fosse queimada.
Em outra casa, encontramos uma menina que acabara de dar à luz. Ela estava exausta e depois do parto foi levada ao hospital. A pobre mãe não tinha nem um pano para cobrir a nova criatura. Então os vizinhos, pobres em bens mas ricos de amor, partilharam imediatamente o pouco que tinham.
Todos estes encontros foram possíveis graças a dona Teresina, uma viúva com um coração grande, que conhece o povo maconde e a sua língua, ela neste tempo é incansável em nos apresentar as tantas famílias que chegam sem nada. Ela nos contou que o seu filho, que é militar, foi chamado para combater os terroristas. Ela e a sua família pediram-lhe que não fosse, porque poderia encontrar um trágico destino, mas ele disse: “Não posso abandonar o meu povo e o juramento que fiz como soldado é para defendê-lo”.
Por fim, numa outra família encontrei hospedadas 35 pessoas, entre crianças e velhos. Os seus corações encheram-se de amargura, por terem tido que deixar a sua querida terra que os viu nascer, que os acolheu e alimentou, e agora não sabem se um dia poderão voltar.
Neste contexto vêm à mente as palavras do Papa Francisco quando nos convida a acreditar que a Igreja neste tempo deve ser como um “hospital de campanha que alivia feridas”, uma igreja que fica ao lado dos crucificados desta história, que é também Igreja da “visitação”, uma Igreja que sente a dor de um parto para dar à luz uma profecia, como nos ensina Maria quando foi visitar a sua prima Isabel.
Uma Igreja que ousa sair com coragem ao encontro dessa humanidade ferida e perdida, e que não tem medo de sujar os pés e as mãos para lhe devolver a dignidade de ser reconhecida como filha amada pelo Pai de todos.
Tenho a certeza de que esta experiência que estou a viver não é somente um “acidente de percurso” ao longo da minha vida, mas sim, uma oportunidade e um dom para viver e mergulhar me nessa plenitude de vida, que nos vai permitir ser pessoas ressuscitadas.
Pe. Davide de Guidi, (Nampula- 17-8-20)