O DIREITO À TERRA
Por Conferência Episcopal de Moçambique
Sabemos todos que no nosso país, nas nossas províncias, nas cidades e distritos incluindo nas nossas aldeias, o povo trava terríveis conflitos de terra. Há pessoas com dinheiro que enganam o povo a vender suas extensões de terra com muito pouco dinheiro. Há outros que até vendem a mesma porção por duas vezes e outros ainda que são arrancados sem ganhar nada. Eis o motivo que nos leva a recordar convosco as reflexões dos Bispos escritos na Carta Pastoral, “Promover a cultura da vida e da Paz” de 15 de Maio de 1996.
O direito à terra
O direito à terra rege-se pela lei positiva emanada dos poderes públicos e pelo direito costumeiro. A lei positiva nunca poderá ir contra a lei costumeira que é um direito anterior a quaisquer disposições da lei positiva. Isso significa que não é lícito exibir um título de propriedade recentemente adquirido para expulsar populações que desde tempos muito antigos, ocuparam sempre essas terras transmitidas de pais a filhos, ao longo de várias gerações, embora sem nenhum título de propriedade escrito.
A Constituição da República de Moçambique em alguns dos seus artigos tem uma legislação sobre o direito à terra. O artigo 109 afirma que “A terra é propriedade do Estado. A terra não deve ser vendida, ou por qualquer outra forma alienada, nem hipotecada ou penhorada. Como meio universal de criação da riqueza e do bem-estar social, o uso e aproveitamento da terra é direito de todo o povo moçambicano.” (Art. 109).
Quanto à lei costumeira, tal lei tem estado sujeita a diversas vicissitudes, primeiramente, quanto a sua interpretação e, em segundo lugar, quanto às dificuldades causadas pela deslocação das populações e pelo afluxo das pessoas às zonas urbanas.
Nós, Bispos de Moçambique, regozijamo-nos pelo facto de se reconhecer oficialmente, o direito à terra, tanto o consignado na Constituição da República, como o que advém do Direito Costumeiro. Contudo, desejaríamos que tal direito se tornasse um direito concreto e efectivo e fosse um instrumento que assegurasse ao cidadão simples a defesa do direito à terra em que vive e da qual tira o necessário para a sua vida e para o sustento da própria família, sobretudo se ela pertencia aos seus antepassados.
O Direito costumeiro
Portanto, o Direito Costumeiro, segundo o qual vive a maioria da população relativamente ao uso das terras, não deve reduzir-se a letra morta, mas deve ser efectivo para facilitar a aquisição de títulos de propriedade em favor dos moçambicanos: facilitar a justa distribuição de terras, tendo em conta, primeiramente, os moçambicanos, abrindo possibilidades de créditos bancários ao investimento agrícola; travar o avanço das multinacionais e das grandes empresas ou possíveis investidores estrangeiros que possam contrariar o “direito da terra” para os moçambicanos.
Portanto, para nós, o Direito Costumeiro de posse da terra continua a ocupar um lugar fundamental, não podendo qualquer Lei sobre as terras ou qualquer disposição do Governo ignorar ou subestimar tal direito. E não é necessário lembrar que qualquer disposição que ignorasse ou menosprezasse tal direito, poderia causar nas populações uma inquietação em nada favorável à paz e à tranquilidade social.
Na verdade, a terra, além de constituir para as famílias e populações um direito que lhes vem dos antepassados, constitui, igualmente, a base fundamental de sobrevivência, quer das pessoas em geral, quer do próprio clã. Por outro lado, o direito à terra é um direito inerente a toda a pessoa (cf. G.S. 69, 74, 87).
O Ensino Social da Igreja
O Ensino Social da Igreja em muitos dos seus documentos tem afirmado e definido energicamente este direito, ligado à propriedade privada, a qual deve ser considerada como “espaço vital” para a Família (M.M. 45) e como meio idóneo para a afirmação da personalidade (M.M. 113). Com efeito, a propriedade privada comporta desde sempre, uma função social (M.M. 20; 28; 120; 121), sendo por isso necessário que, em todo o tipo de propriedade, se tenha em conta o princípio relativo ao destino universal dos bens (C. A. 30-31).
Na defesa do direito de propriedade privada há que ter em conta igualmente o avanço do “capitalismo selvagem” (C. A. 8), assim como os “monopólios” ou os novos donos do mundo, tais como as multinacionais e outros poderes económicos cujas políticas deixam, por via de regra, tantos povos à margem do progresso e do desenvolvimento a que têm direito (C. A. 35).
Aflição do povo moçambicano
Gostaríamos, por fim, de chamar a atenção para a grande aflição em que vive o povo moçambicano por ver perdidas, de um dia para outro, as terras dos seus antepassados, especialmente as terras mais férteis, assim como para a intranquilidade dos cidadãos ao verem o seu direito à terra impunemente lesado e muitas vezes sem terem, na maior parte dos casos, a quem recorrer para apresentar as suas legítimas reclamações, e verem defendidos os seus direitos.
Terminamos, apelando a todos os homens e mulheres do nosso País, a todos os jovens e famílias, a todos os partidos políticos e poderes públicos, ao Governo, à sociedade civil, às Instituições de Educação e de Cultura, às Associações de carácter social, cultural e de direitos humanos, aos Meios de Comunicação Social, às Igrejas e Religiões para que assumam com entusiasmo cada vez maior este combate em favor da vida, em favor da justiça social e da edificação de uma sociedade em liberdade, em favor de um País verdadeiramente desenvolvido, culto, pacífico e democrático. É tempo de anúncio da vida e da vida em abundância! É tempo de paz na justiça e no amor!