REGIME DA PROPRIEDADE DA TERRA EM MOÇAMBIQUE
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Por: Uacitissa António Mandamule (OMR)
Questões actuais sobre a terra
Em Moçambique a terra não pode ser vendida, mas ela é comprada. O Estado não reconhece a propriedade privada sobre a mesma, muito menos a sua venda, ainda que de maneira mais ou menos generalizada aquela exista, envolvendo nas transacções diferentes atores a diferentes níveis da hierarquia social, inclusive entre as elites que integram os sistemas do poder.
Actualmente, dentre as questões que têm sido objecto de debate no que concerne à questão da terra em Moçambique – algumas ainda que de forma mais ou menos discreta: (i) a centralização da propriedade da terra pelo Estado; (ii) o não reconhecimento da propriedade privada da terra; (iii) e, portanto, a impossibilidade de transaccioná-la, monetária e formalmente no mercado.
A questão da garantia de segurança de posse da terra, sobretudo para os cerca de 75% da população que têm na agricultura a base da sua subsistência e na terra o seu maior recurso, tem igualmente assumido uma importância crescente, sobretudo no actual contexto de grande procura de terras em África e outros países em desenvolvimento. Esta apetência pelas terras resultou em parte do grande crescimento populacional em África e no mundo e, sobretudo, da crise financeira e alimentar de 2007/2008 que provocou graves consequências a nível da segurança alimentar e energética dos países “açambarcadores”, sendo Moçambique um dos destinos preferenciais dos investimentos estrangeiros.
A terra como um bem comum
Várias são as acepções que a expressão “bem comum” pode assumir, indo desde o conjunto de elementos oferecidos naturalmente a todos os seres humanos, ou seja, a terra, a água, os minerais, rios, mares, vento, sol, clima, atmosfera, biodiversidade, entre outros, (FLAHAULT, 2011), às simples relações sociais (materiais ou imateriais) que se estabelecem sobre aqueles recursos (LIPIETZ, 2010).
Para a teoria dos direitos de propriedade, de fundamento neoclássico, o crescimento demográfico e a crescente comercialização da agricultura levam à escassez de terra, passando esta a ter um valor económico e transformando-se progressivamente em um bem comercializável e apropriável individualmente (BADOUIN, 1974). Nestas circunstâncias, a ausência de propriedade privada é prejudicial pois as explorações não são feitas de maneira ecologicamente sustentável e, por sua vez, os investimentos não conservam nem melhoram a qualidade dos solos e da produção, provocando desta forma importantes externalidades (LAVIGNE-DELVILLE, 1998).
Já na sua variante evolucionista, a teoria dos direitos de propriedade salienta que, sujeitos ao crescimento demográfico e do mercado, as sociedades humanas tendem a evoluir espontaneamente em direcção a uma generalização da propriedade privada, individual e familiar, da terra, ao mesmo tempo em que assistimos ao enfraquecimento e desaparecimento do papel das autoridades tradicionais. A persistência da gestão comunitária em algumas extensões de terra, a resistência à venda de terras para fora da comunidade de pertença, o carácter reversível das vendas de terras e a persistência de relações clientelistas autoridades comprador e vendedor, etc., são sinais de um período transitório, antes do desenvolvimento de um verdadeiro mercado de terras (PLATTEAU, 1998).
A essas situações, os governos devem responder através duma inovação institucional sob forma de títulos de propriedade e direitos registados junto a uma agência central especializada (PLATTEAU, 1998). Tal intervenção, embora de carácter não obrigatório, é necessária na medida em que flexibiliza a determinação dos preços de venda e compra de terras (NEGRÃO, 2011), assegura a posse da terra, permite o acesso ao crédito que, por sua vez, contribui para o aumento da produtividade, e põe fim aos conflitos que tendem a aumentar quando a terra se torna objecto de concorrência (LAVIGNE-DELVILLE, 1998).
Em Moçambique, em particular, o Estado reconhece o poder das autoridades e notáveis comunitários (chefes tradicionais, secretários de bairro ou de aldeia, régulos, etc.) como sendo os legítimos representantes das comunidades. Aquelas participam através de instituições de participação e consulta comunitárias (Comités, Conselhos, Fóruns) na gestão dos recursos naturais.
Procedimentos de acesso à terra e DUATs
Em sociedades maioritariamente rurais, como a moçambicana, além de constituir a fonte primeira de subsistência das famílias, a terra tem um valor e significados sagrados determinados, por um lado, pela ligação que esta cria com os ancestrais e, por outro lado, pelo poder que ela confere a quem é, legal ou tradicionalmente, o legítimo responsável pela sua gestão. As normas de reciprocidade enraizadas e partilhadas pelos indivíduos envolvidos na relação com a terra, através do cultivo, produção, habitação ou culto aos ancestrais, criam uma certa ordem e estabilidades, que harmonizam a convivência em sociedade e facilitam a aceitação das normas e a configuração do poder criadas pela organização do espaço.
Considerado um direito natural dos indivíduos, o acesso à terra no meio rural, bem como o sentimento de apropriação, são relativamente fortes pois a terra e todos os recursos que dela provêm são considerados pertença das famílias que os gerem segundo normas e práticas costumeiras adquiridas, apropriadas, reproduzidas e transmitidas rotineiramente de geração em geração, conferindo-lhes, assim, maior aquiescência, relevância e segurança. Estas normas são igualmente aceites e respeitadas pelos Estados, que, em alguns contextos, são os legais proprietários da terra, mas não o seu legítimo dono. Por isso, alguns países como o Senegal, Guiné Equatorial, Costa do Marfim, Burquina Fasso, por exemplo, optaram pela combinação entre o direito dito “moderno” e o “direito tradicional” (MATHIEU, 1996), incorporando, reconhecendo e reforçando a legitimidade deste último, sobretudo no meio rural.
Moçambique também faz parte dos países que adoptaram um regime de dualismo jurídico, sobretudo no que concerne à gestão dos recursos naturais, ainda que factualmente antecedido de períodos de práticas administrativas excessivamente centralistas. Apesar do ideal de “libertação da terra e dos homens”, não houve no Moçambique pós-independência, como referiu Norton (2005), uma redistribuição justa da terra pelas famílias rurais. Pelo contrário, assistiu-se a uma “dependência da trajectória” (GAZIBO & JENSON, 2004) marcada pela reprodução das práticas administrativas das antigas potências coloniais, transformação das propriedades agrícolas privadas em machambas estatais, socialização do campo nas cooperativas e aldeias comunais, e confiscação das terras dos camponeses e pequenos produtores privados (CAHEN, 1987).