EU SOU UM NEGRO MUITO CARO
Por Kant de Voronha
Em muitas ocasiões, famílias há que se dizem civilizadas e, portanto, portadoras da cultura do outro continente estrangeiro. Esse tipo de pessoas não se identifica nem tão pouco com a cultura dos seus pais e antepassados. Vivem como se fossem oriundas de Portugal ou Espanha ou Brasil. Tudo quanto as caracteriza é a cultura doutro mundo. Única coisa que estimam é a cultura da Televisão.
Lembra-me, igualmente, aquilo que um senhor disse emcerta altura ao afirmar que: “Existe a civilização de não saber nem querer falar a língua Emakhuwa. Um fenómeno estranho verifica-se entre alguns membros que são mas não querem identificar-se como pertencentes à etnia Makhuwa: não sabem falar a língua; e isso chamam de “civilização”; repreendem os seus filhos se os apanham a falar essa língua; expulsam empregados que se atrevem a falar Emakhuwa no recinto da casa. Será Auto negação?”
Ao ler esta afirmação que é verdadeira, caiu-me um oceano de lágrimas escorregando sobre o meu rosto macio. Parecia ter visto uma legião de fantasmas rodeando a minha presença.
Chorei porque conheço inúmeras pessoas que realmente pensam ser civilizadas. São pessoas que nos envergonham porque elas próprias se envergonham da nossa cultura. Nasceram cá, no meio duma floresta e cresceram no clima ambiental de muitos de nós. Mas porque leram um pouco, tentam esquecer não só a sua cultura, como também os seus pais e familiares. É uma autêntica vergonha cultural. São pessoas que vivem sem identidade, carregadas de falsidade porque vivem de aparências. Tudo quanto fazem é aparentar-se com aparência, mas o coração está vazio, desprovido daquilo que lhe é essencial. Talvez esqueceram que “as aparências enganam”.
Na verdade, há muitas pessoas que não falam a língua materna; proíbem seus filhos de aprender e falar a língua local com seus amigos e fingem de viver como estrangeiros. Enganam-se a si próprios e enganam a quantos acreditam em suas mentiras. Vivamos como nós e sejamos protagonistas da nossa cultura. Pois, aqueles de quem queremos imitar a língua e a cultura, torcem por manter a hegemonia da sua própria cultura e língua maternas.
Não adianta tentar viver como não natural de cá enquanto o seu berço é negro e a sua cultura makhuwa ou maconde ou Sena ou ainda Nyungwe, Ndau, machangana, etc. Identifiquemo-nos connosco mesmos e uma verdadeira pessoa não se envergonha de ser o que é.
Aliás, o desconhecimento da língua remete-nos à ignorância da sua cultura. Por isso mesmo, a língua é uma das manifestações culturais que fundamentam a identidade de um povo. É também um dos elementos essenciais na construção da subjectividade, possibilitando o elo das novas gerações com a herança cultural da comunidade a que pertencem.A oralidade, em especial, é a manifestação da língua viva e, como tal, é dinâmica, variando de acordo com o uso que fazem dela. Assim, é pela oralidade que a identidade de um povo se mostra com mais força, revelando a diversidade, os conflitos, as tendências presentes em sua sociedade.
Tal como acontece em muitas famílias que vivem nas cidades, o casal de Malaquias Omar e Josina Mussa tem 3 filhos. Malaquias nasceu em Morrumbala e Josina teve a sorte de nascer na cidade de Maputo. Por ironia do destino, este casal fixou a sua residência na cidade de Nampula onde trabalham para combater a fome e ganhar o pão de cada dia.
Juju, Fifi e Fufa (a tripla desse casal) não sabem outra língua moçambicana senão a língua de Camões (Português). Juju tem 25 anos. Depois de terminar a Faculdade teve a oportunidade de trabalhar como técnico agrónomo no distrito de Lalaua. Outra chance não havia senão falar com os camponeses em Emakhuwa que ele não sabia. Um mês depois, tentando enganar que sabia morder algumas palavras de makhuwa, voltou para dar relatório a seus pais com desejo ardente de abandonar o serviço. Assim que chegou a casa de seus pais disse: “Vocês são culpados. Se me tivessem ensinado ou se me deixassem aprender emakhuwa hoje não estaria a passar por esta vergonha. Estou quase para ser despedido no serviço porque não consigo comunicar-me com os camponeses”.
Carregado de lágrimas nos olhos, Malaquias soluçou algumas palavras em jeito de resposta: “Filho, eu sou um negro muito caro. Já estou civilizado. Isso de falar língua local é rebaixar-se”. É assim como muitos moçambicanos se inferiorizam negando as suas origens culturais. E também é dessa mesma forma que alguns jovens perdem oportunidades de trabalho por falta de domínio da língua materna. Será o seu caso? E mais não disse!