Dom Manuel Vieira Pinto: herança e desafios
Pela Redacção
No dia 30 de Abril deixou-nos Dom Manuel Vieira Pinto, arcebispo emérito de Nampula de 1967 até 2001, testemunha do Senhor ressuscitado na história de Moçambique. O seu legado para as comunidades cristãs continua a ser a conjugação positiva entre a fé e a vida de cada dia iluminada. Resumo dum texto já publicado por P. Zé Luzia autor de várias e prestigiadas publicações sobre a figura de Dom Manuel.
“Cristianismo e religião – Fé e revolução” foi o título da carta-pastoral do Bispo Manuel Vieira Pinto no Natal de 1978. Num tempo de ateísmo militante, tratou-se de uma proposta e de um desafio a um diálogo sereno com os ideólogos marxistas da Frelimo. Afinal, a religião não tem de ser, fatalmente, ópio do povo, mas também pode ser fonte de rebeldia revolucionária, de inspiração transformadora da sociedade.
Dom Manuel, também nisto se revelou o pastor intrépido, seguro de que as vicissitudes por que a Igreja católica passava, às mãos da Frelimo, eram o dedo de Deus a fazê-la renascer no coração do Povo como genuinamente moçambicana. Nada de anticomunismo primário ou de tentação de resistência à proposta de reconstrução nacional. Manuel Vieira Pinto foi, também, tranquilamente, catequista dos políticos. Por isso pode responder à conhecida interpelação de Samora: “Deus não precisa que o defendam. O Homem sim!”.
Atenção aos últimos
Dom Manuel, como verdadeiro discípulo de Jesus, foi um incontornável defensor da dignidade de todo o humano. E foi-o, especialmente das pessoas mais pobres, mais abandonadas nas margens do mundo, ou perseguidas pela sua entrega ao serviço das causas da verdade e da paz; e mais ainda, e, tantas vezes, sacrificadas e massacradas na estupidez de todas as guerras, enfatizando, aqui, sua querida terra moçambicana, a tristemente inesquecível guerra civil – a tal dos 16 anos – de que ainda ninguém se penitenciou. Nem Frelimo nem Renamo.
O silêncio parlante: a Doença
A pandemia do COVID 19 obrigou a que o seu funeral não tivesse a solenidade que todos desejávamos e tivesse sido feito na exiguidade e nos constrangimentos de todos conhecidos. Um dia, convocar-nos-emos de novo para fazermos a celebração da glorificação pascal da vida tão plena de tão grande pastor. Por causa da sua doença prolongada, já nos tínhamos habituado ao seu silêncio, à sua ausência de cena, à sua voz emudecida pela doença. Afinal, mesmo roubado pela doença, há anos, ao nosso convívio, todos continuávamos a senti-lo vivo, palpitante, como se fosse nosso eterno companheiro nesta peregrinação terrestre.
A “Irmã Morte” veio despertar-nos, a todos, da letargia em que vivíamos e trouxe para a ribalta mediática, sociológica, política e eclesial, o nosso Pai (como tão carinhosamente, sobretudo os mais humildes do Povo Moçambicano, me perguntavam por ele).
Recordar é viver e crescer
“Eu, muito jovem (ndr.Pe. Zé Luzia) , cheguei a Nampula, ao convívio do Bispo Manuel, em 1968.
Eu, aprendiz de missionário e de padre, logo me dei conta do pastor sempre aproximado de toda a gente. A “Diocese”, designação, então da casa do Bispo, deixava de ser o palácio distante onde os pobres nunca tinham acedido. Como, 45 anos depois, viria a dizer o Papa Francisco, “um Pastor com cheiro a ovelhas”. De facto, o Bispo Manuel foi, como agora Francisco, sempre surpreendente nas palavras e nos gestos.
Atrevido, avantajou sempre as asas dos nossos voos de jovens insatisfeitos e rebeldes, arroteando caminhos por abrir. Ousado! Tanto na pastoral em sentido mais estrito, como nas suas incidências políticas, como o testemunham as homilias “Repensar a guerra” (1974), interpelando o governo e a sociedade coloniais, que o levou à expulsão; e “A Coragem da Paz” (1984), desafiando, em nome do Povo, o Presidente Samora a entabular o diálogo com a Renamo”.
Dom Manuel em sintonia com Papa Francisco
Como Igreja, conheci, na prática, um Bispo não-clerical. Com ele aprendi a ser animador de uma genuína Igreja de Todos, crescentemente livre do vício clerical, pela participação de todos os baptizados, do pé descalço ao engravatado, tanto ao gosto, hoje, do Papa Francisco.
Nessa linha, aprendi a ser padre mais da “Igreja das Palhotas”, das pequenas e humildes comunidades emergentes, do que da grandiosidade das empoladas catedrais por impressionantes que elas possam ser.
Com efeito, foi também o atrevimento e a aposta do Bispo Manuel que fez, dos animadores paroquiais, homens e mulheres simples e de pé no chão, protagonistas do renascimento da Igreja católica em Moçambique, e mais particularmente, na Diocese de Nampula, no contexto do ateísmo a seguir à independência.
Convite a não esquecer
É necessário que o mundo académico, a começar pelos nossos seminários e as instituições universitárias, produzam trabalhos de pensamento que rentabilizem a preciosa herança que ele nos deixou. Apesar de ele ter sido, entre outros, alvo duma “ingratidão” por parte do governo que nem se lembrou de lhe manifestar a sua gratidão com a consolação de o brindar com a nacionalidade (pedido que ele nunca fez por uma questão de evitar equívocos e mal-entendidos), Dom Manuel fica como um marco indiscutível da história religiosa e cívica de Moçambique.
Os dias do Moçambique de hoje no-lo exigem. A guerra que lavra no centro do país, e o terrorismo criminoso de Cabo Delgado, desafiam-nos como cidadãos e como cristãos.
Infelizmente, Dom Manuel