“Do eldorado do gás ao caos”
- “Do eldorado do gás ao caos”, Dossier elaborado pela Organização Amigos da Terra Internacional, Junho 2020
Tesouro envenenado
A partir de 2010 até 2013, foram descobertas enormes reservas de gás em Moçambique: cerca de 5000 milhares de milhão de metros cúbicos, prevendo um investimento de, pelo menos, 60 mil milhões de dólares nos próximos anos para explorar as reservas, um dos maiores investimentos alguma vez feito na África Subsariana. Um tesouro que já se está a transformar num pesadelo para os habitantes do norte de Cabo Delgado que enfrentam um conflito aceso e mortal desde 2017.
Entre 2010 e 2013, descobriram-se enormes reservas de gás no norte da província de Cabo Delgado, que supostamente colocariam o país entre os cinco principais exportadores de gás liquefeito (GNL) a nível mundial. Assim as praias de areia fina de Cabo Delgado, tornaram-se a nova casa da indústria do gás e de todas as empresas que giram em torno dos referidos megaprojectos de energia.
Bem sabemos que essas reservas situam-se no extremo norte do país que tem sido o centro das atenções nos últimos meses, devido à intensificação dos ataques de grupos de insurgentes contra a população civil e o exército Moçambicano. Os primeiros ataques coincidiram com a concretização dos projectos de exploração de gás, que exacerbam as tensões sociais, religiosas, étnicas e políticas na origem de um conflito que se agrava.
Projecto TOTAL
Com a chegada da Total na qualidade de operador de um dos três projectos e numa altura em que o conflito ganha envergadura, a França interessa-se cada vez mais por esta região, que é altamente estratégica para eles, os seus industriais e os seus bancos.
Para o projecto da Total, os operadores decidiram realizar tudo em offshore (no mar) com uma unidade flutuante de liquefacção e armazenamento de gás, ancorada a 60 km das costas Moçambicanas, com perfurações de cerca de 2 km de profundidade. O gás será, então, explorado e liquefeito para ser, depois, exportado.
A Península de Afungi, perto da cidade de Palma, acolhe as instalações onshore (na terra): um imenso parque industrial de 18 000 hectares onde serão construídas todas as infra-estruturas de GNL (terminais, comboios de GNL, reservatórios, embarcadouros, aeroporto próprio etc.). Essas instalações serão ligadas por gasodutos aos campos submarinos das áreas 1 e 4. Na Península de Afungi, a Total e a ExxonMobil arrancaram com as obras de construção. A Total encarrega-se da maior parte dos trabalhos nesta etapa, uma vez que já avançou mais no processo de financiamento. Cerca de 8000 operários estavam no local antes da epidemia da Covid-19 que diminuíram consideravelmente até ao mês de Janeiro, pela insegurança vivida nos estaleiros devido também ao aumento dos ataques terroristas nas proximidades.
Gás e conflito armado
As comunidades locais são as principais vítimas das consequências do boom do gás e do conflito que mina a província de Cabo Delgado. Uma insurreição que mata e ganha amplitude há cerca de três anos que multiplica os ataques dos grupos terroristas, conhecidos como Ahlu Sunna Wa-Jama e a que a população local chama «al-Shabab», há como consequência a militarização da zona, para contrastar o conflito armado que influencia também o processo de relocalização e de indemnização das famílias desalojadas pelos operadores da exploração do gás. Os desalojamentos das populações em virtude dos projectos de exploração de gás e a militarização da zona a favor das corporações transnacionais do gás em detrimento das comunidades locais, só exacerbam as tensões.
Gás e Deslocados internos
De Outubro de 2017 a Outubro de 2020, os insurgentes realizaram mais de 600 ataques terroristas nos distritos do norte e centro da província de Cabo Delgado, causando mais de 2000 mortes entre a população. Para além da barbaridade na forma de actuação, a face mais visível dos ataques em Cabo Delgado é o crescente número de deslocados internos, que atingiu mais de 500 mil até ao final de 2020 correspondente a cerca de 13% da população da província nortenha de Cabo Delgado com o um aumento em mais de 2700% deslocados, em apenas dois anos. Com a população moçambicana estimada em cerca de 28 milhões de habitantes, cerca 500 mil vive na condição de deslocados, acolhidos em 13 centros de acomodação, criados pelo Governo e parceiros, assistidos pelo PMA, INGS e a Caritas.
Porém, a maioria dos deslocados está hospedada em casa de familiares sem o mínimo de condições para lhes garantir as condições básicas de sobrevivência. Desta forma, podemos dizer que nasceram dois grupos distintos de deslocados internos: por um lado, a maioria que se abriga em casas de famílias acolhedoras e outro, que está em centros de deslocados criados para o efeito.
Desafios sociais
Neste tipo de projecto de exploração de energias fósseis, operadores como a Total, a ExxonMobil ou a ENI são geralmente obrigados a criar empregos locais, consoante os regulamentos editados pelo país que detém os recursos em hidrocarbonetos no seu solo, ou o chamado conteúdo local. Entretanto, alguns observadores já constataram que o governo Moçambicano se concentrou largamente em duas decisões finais de investimento rápidas, visando obter as receitas o quanto antes para saldar a dívida, conhecida vulgarmente como a “divida oculta”, em detrimento do desenvolvimento desse conteúdo local.
O gás criou muitas expectativas, mas desde 2016 que as populações locais se queixam de ser muitas vezes ignoradas, mesmo no que se refere à criação de empregos não qualificados. Segundo afirmam, as grandes empresas de exploração de gás e os seus agentes contratados preferem contratar estrangeiros ou pessoas da capital em detrimento dos habitantes locais, alimentando, assim, não só as tensões comunitárias e étnicas, como também o conflito em Cabo Delgado.
Consequências ecológicas
Alguns estudos técnicos dos projectos analisados revelam que a exploração de gás no mar irá provocar a degradação do habitat de muitas espécies de peixes que vivem na área. No próximo futuro o ruído e as colisões com os navios, nomeadamente, com os imponentes petroleiros de GNL, forçarão espécies com a baleia-de-bossa e a baleia boreal a abandonar a zona. Já se comprovou que as sondas sísmicas e os canhões de ar comprimido utilizados nas perfurações offshore (no mar) afectam os mamíferos marinhos, os peixes e outras formas de vida marinha, provocando desde o abandono da zona até ferimentos e mortes. Pior ainda, os riscos de fugas de GNL poderiam provocar incêndios ou explosões afectando consideravelmente a fauna e a flora marinha.
O debate da sociedade civil em torno dos megaprojectos da exploração do gás está aceso. Há quem diga que é melhor parar esperando tempo melhores ou há quem afirma que não se deve perder esta grande oportunidade de desenvolvimento para o Pais. Numa maneira ou outra é necessário que sejam salvaguardados os direitos fundamentais da população residente, que os benefícios económicos sejam investidos no bem-estar de todo o Pais, que haja o respeito pelo meio ambiente envolvido nos projectos e que haja transparência em todo o processo para evitar suspeitas e tentações. Enfim, se os interesses económicos ultrapassam o respeito das comunidades humanas algo de errado está acontecer.