Morte de principais actores políticos: uma marcha de regresso ao passado?

Dr Deolindo Paúa
O prematuro desaparecimento físico de DavizSimango, edil da cidade da Beira e fundador do MDM, estimula-nos uma reflexão sobre a democracia.
Moçambique é um país em construção. A sua democracia está ainda em passos por aperfeiçoar. A democracia deve ser permitida e aceite por quem governa, para permitir que os governados participem com ideias e acções no desenvolvimento do país por meio dos mais adequados caminhos; mas também a democracia deve ser praticada pelos cidadãos no sentido de tentarem ocupar oseu lugar no panorama político. Esta prática dos cidadãos deve ser falando, reclamando, fazendo propostas, exigindo seus direitos, criticando o que não está correcto, denunciando ilegalidades, etc.
Como funciona a democracia?
Estamos a dizer que a Democracia funciona com liberdades, igualdade e justiça social. Liberdade no sentido de que todos os moçambicanos precisam ter e assumir a propriedade sobre o seu pensamento e sobre a sua palavra. Ninguém pode proibir ninguém de falar ou de opinar; igualdade no sentido de que no nosso país, as divergências de religião, de tribo, de cor de pele, de posses económicas, de estatuto social ou político não podem servir como base para a diferenciação nos direitos. Todos os moçambicanos, como seres humanos, são iguais e possuem os mesmos direitos e deveres; finalmente justiça social no sentido de que as oportunidades de sobrevivência devem ser disponibilizadas para todos de igual para igual.
Esses pressupostos da democracia facilitam a participação. Embora depois da independência a Frelimo e Samora Machel dissessem que o país era democrático, que vigorava a democracia popular, faltavam ainda pressupostos por serem preenchidos. Um desses pressupostos era a participação. Nenhum cidadão comum se podia atrever a contradizer as ordens do governo central. A opinião vigente, a mais correcta era a tomada pelas autoridades, mesmo sob o risco de se enganarem. A participação popular não era racional, mas manipulada. Além da participação popular, existe aquela participação que é feita por outras organizações discordantes com as políticas de quem dirige. Falamos da participação da sociedade civil e dos partidos políticos. Estas também não havia, pelo menos em termos de espaço de acção. Havia um único partido, uma única sociedade civil, uma única voz certa e verdadeira com quem todos estavam obrigados “democraticamente” a concordar.
Sem participação não podemos dizer que nessa altura em Moçambique havia democracia, até que anos depois, em 1990, depois de um longo período de pressão militar, começou a haver abertura para as liberdades de participação e de opinião popular. Em termos políticos, dois anos depois começamos a ter alternativas políticas, opções de escolha para a governação. A participação política, portanto, começa a se alargar. Mas mesmo assim, durante anos, notamos que essa participação política estava limitada a dois partidos, a Frelimo e a Renamo, e as principais figuras do teatro democrático foram por longos anos os candidatos da Frelimo e o líder da Renamo, o falecido presidente Afonso Dhlakama. Como é óbvio, era uma democracia incompleta. Aliás, a Assembleia da República foi dominada pelos dois partidos, que levou a debates deficientes e até muitas vezes marginais.
A participação política de Daviz Simango
Uma democracia, no sentido de participação deve alargar a sua arena a vários actores, por isso o aparecimento, mais tarde do partido Movimento Democrático de Moçambique (MDM) como terceira força política nacional e o 3º partido na Assembleia da República, bem como do seu líder DavizMbepoSimango, trouxe alguma esperança para o alargamento da participação política, a melhoria dos debates na Assembleia da República que passariam a ser tripartidos. Com esse facto, o MDM e DavizSimango fizeram história e mudaram o rumo das coisas e aqualidade do debate nacional.
Não se pode negar que com Simango e o MDM anossa participação como povo no debate público cresceu. Ainda que três partidos sejam insuficientes, criou-se, pelo menos, uma esperança de que oscaminhos estão sendo abertos para a entrada na arena de vários outros partidos. Uma democracia é sólida e verdadeira quando aceita diversas sensibilidades nos principais órgãos do Estado. O erro que cometemos como moçambicanos neste tempo todo de aperfeiçoamento da nossa democracia pode ter sido o de assentar a democracia em pessoas, sustentar a popularidade e legitimidade dos partidos políticos nos seus líderes. Por isso, há sinais de que a Renamo só foi gloriosa enquanto viveu oseu líder.
Morte de Daviz abala a política do país
Tal como no passado ano de 2018 o país perdeu uma das peças importantes da democracia, o líder da Renamo Afonso Dhlakama, há dias, três anos depois, o país perdeu mais um líder influente e incontentável na história da construção da nossa democracia, DavizSimango. Um abalo para a política moçambicana! Dhlakama foi o responsável pela desconstrução do monopartidarismo e lutou de todas as formas para implantar a liberdade e a justiça social no nosso país. Igualmente Simango foi o responsável pela desconstrução do bipartidarismo e embora enfrentando as deficiências da liberdade política que afecta o país, conseguiu solidificar a ideia de que é possível fazer representar todas as sensibilidades nacionais nos principais órgãos e acima de tudo, introduzir uma nova abordagem e dinâmica na governação de territórios municipais. Por isso surgiu a esperança de que algum dia se quebre também o tripartidarismo e assim em diante, num processo imparável de aperfeiçoamento da nossa Democracia.
Não se pode falar de democracia moçambicana sem falar de Dhlakama e de Simango. É por isso que aincerteza da continuidade da luta pela democracia pode nascer. Morreu Dhlakama e a Renamo perdeu asua pujança. O nosso receio pode ser o de que agora que morre Simango, o MDM também perca asua pujança e a nossa democracia volte vários passos atrás.
As células do partido na função pública
O monopartidarismo, embora tenha sido eliminado formalmente, continua implantado e solidificado informalmente. Penso que os funcionários públicos sabem das células do Partido Frelimo nas instituições públicas, penso que toda a sociedade tem a consciência da existência de um critério de acesso a fontes de sobrevivência pela exibição do cartão de membro do partido. Penso que também todos sabemos de toda a influência que o partido tem sobre os outros órgãos de decisão do Estado.
Sabemos de todos os sinais e vontade de quem detém o poder nos fazer regressar a época do partido único. A verdade é que estaremos mais inseguros se voltarmos ao monopartidarismo. Dhlakama e Simango sabiam disso. Por isso eles se bateram incansavelmente para reduzir essa tendência ao mínimo. Lamentamos a morte de Simango, que pode ser a morte do sonho nacional de despartidarização do aparelho do Estado.
Cabe aos partidos políticos aos quais estes grandes líderes pertenceram, garantir que as suas lutas não tenham sido em vão. Mas cabe acima de tudo, a nós como cidadãos e à sociedade civil em geral, garantir que as nossas liberdades e os nossos direitos não sejam coarctados apenas porque os líderes que eram incómodos ao sistema, pereceram. Há projectos e sonhos nacionais que devem ser perpetuados por todos e o de Simango é um deles.