DIFERENÇA E SEMELHANÇA ENTRE PROFECIA E APOCALIPSE
Frei Carlos Mesters, Carmelita
2ª Chave
DIFERENÇA E SEMELHANÇA ENTRE PROFECIA E APOCALIPSE
Quando dizemos: “Fulano é um sujeito apocalíptico!”, costumamos indicar uma pessoa que só fala em desastres e fim do mundo. Quando dizemos: “Fulana é uma profetisa!”, indicamos uma pessoa, cuja palavra tem uma mensagem importante para os outros. Como explicar esta diferença? Profecia e Apocalipse não são ambos manifestações do mesmo Espírito de Deus e fontes de espiritualidade para o mesmo povo de Deus?
Muitas vezes, se diz: “Temos que ser profetas!” Nunca se diz: “Temos que ser apocalípticos!” Pelo contrário! A palavra apocalíptico parece ter uma apreciação negativa. As igrejas até costumam reagir para manter fora de casa os ares aparentemente confusos e incômodos do movimento apocalíptico. Mesmo assim, o movimento pentecostal-apocalíptico cresce como uma bola de neve. Cresce em toda a parte, sobretudo entre os mais pobres e excluídos. Assim acontecia no fim do primeiro século. Assim acontece hoje.
No Antigo Testamento, antes do exílio, no período dos Reis, entre 1000 e 587 aC, não havia Apocalípticos, mas havia muitos Profetas. Depois do exílio, de 587 aC até 100 dC, depois que os grandes impérios tomaram conta do mundo, os profetas começaram a desaparecer e apareceram os apocalípticos que produziram uma abundante literatura entre o século IV aC e o século II dC. Como se explica esta mudança? Qual a relação entre apocalipse e império, entre o movimento apocalíptico e a situação sócio-política e econômica em que o povo vive?
Desde o início da monarquia, em torno do ano 1000 antes de Cristo, até o exílio, 587 aC, os profetas faziam parte da vida do povo de Israel. Eles eram a consciência falante do povo de Deus. Depois do exílio, porém, o povo dizia: “Não existem mais profetas” (Sl 74,9). Chegaram a dividir a história em dois períodos: o período em que havia profetas, e o período “em que já não havia mais profetas” (1 Mc 9,27). Falava-se dos “antigos profetas” (Zac 1,4; 7,7; cf Ez 38,17). Coisa do passado! Tinham até feito uma lista que já estava completa e encerrada: “doze profetas” (Ecli 49,10). E diziam: “Antigamente, Deus falava para a gente, agora já não fala mais!” (Sl 99,6-8). O povo constatava a mudança, mas não sabia explicar por que Deus já não se manifestava como antes. Achavam que “a mão de Deus tinha mudado” (Sl 77,11). Só ficou a saudade, cada vez mais forte, dos antigos profetas!
Assim, durante os mais de 400 anos do período dos reis, eles tiveram profetas. Durante mais de 500 anos, desde o exílio até João Batista, viveram sem profetas! É neste período sem profetas que surge o movimento apocalíptico como nova forma de profecia, como nova manifestação do Espírito, como nova espiritualidade. Qual a experiência humana que, quando iluminada pela Palavra de Deus, gera a profecia, e qual a experiência humana que, quando iluminada pela Palavra de Deus, gera o movimento apocalíptico?
A experiência humana em que surge e floresce a profecia
Os profetas do tempo dos Reis viviam numa época em que era possível abarcar e controlar a situação. O espaço em que viviam, o território, era limitado e podia ser defendido e governado. O povo que vivia dentro deste território podia ser convocado, recenseado e cobrado. Eles eram donos do espaço em que viviam. Tinham autonomia política. Todos professavam a mesma religião, tinham fé no mesmo Deus. Todos eram súditos do mesmo rei, tinham o mesmo compromisso de observar a Aliança. Eles eram uma nação independente, senhora do seu próprio destino, da sua própria história. Era dentro deste espaço limitado que eles procuravam viver a sua fé em Deus, observando a Aliança.
Na origem da ação profética está uma experiência humana muito profunda e muito comum até hoje. Quando, diante de uma injustiça, você percebe que tem a possibilidade de fazer algo para mudar a situação, então, dentro de você, nasce um sentimento de responsabilidade que o faz dizer: “Não posso ficar parado! Deus está me chamando! Devo fazer alguma coisa!” Não é assim? Pois bem, a ação profética nasce desta consciência forte que, de vez em quando, surge em nós de que podemos e devemos fazer algo para mudar a situação. A teologia da Libertação é profética. Ela nasceu da consciência e da possibilidade que se entrevia de nós cristãos podermos interferir no rumo da história da América Latina e de transformarmos a situação de acordo com as exigências da Aliança, do Evangelho. Ela usa expressões que traduzem a mesma experiência: ser sujeito da história, assumir nossa responsabilidade diante dos fatos, responder diante de Deus pelo que acontece no país, cumprir nossa tarefa de transformar a situação.
A mudança que ocorreu
O exílio da Babilônia (598 aC a 537 aC) provocou uma grande mudança, pois quebrou o sistema sócio-político em que o povo vivia no tempo dos reis. Em 598, a elite (rei, sacerdotes, falsos profetas, nobres e chefes) foi levada para o exílio (2Rs 24,10-17). Dez anos depois, em 587, o pouco que restava da liderança foi preso e morto (2Rs 25,1-21). Jerusalém, a capital, junto com o Templo, o santuário do rei, tudo foi destruída. Todos ficaram sob o domínio do poder estrangeiro, sem mais nenhum recurso para poder controlar a situação. Já não eram Estado nem Nação, mas apenas uma comunidade étnica, perdida num império multi-racial, sem independência política, sem exército, sem rei. O espaço livre ficou muito reduzido e, no decorrer dos anos, foi ficando cada vez menor. O pouco poder que lhes sobrou se concentrava em torno do Sacerdócio que controlava o Templo e em torno dos doutores ou escribas que controlavam a explicação da Lei.
Anteriormente, na época da monarquia, o povo experimentava o mundo, o tempo (história) e o espaço (território) como entregues à sua própria responsabilidade. Esta experiência despertava nele a vontade de interferir no rumo das coisas e gerava a profecia. Quando, naquele tempo, o povo do campo era oprimido pelos poderosos, ameaçado de perder suas terras, surgiam profetas como Amós, Miquéias, Isaías e Jeremias. Eles enfrentavam os poderosos e cobravam deles o compromisso da Aliança. A fé em Deus assumia a forma de compromisso e de engajamento. Prevaleciam a observância da Lei de Deus e a fidelidade à Aliança.
Mas agora, nesta nova situação, era impossível imaginar alguém das aldeias da Palestina ser profeta ou profetisa no estilo antigo. O camponês da Palestina não tinha nenhuma possibilidade de cobrar do imperador helenista a observância da Lei de Deus. O mesmo acontece hoje. Difícil imaginar, por exemplo, que o coordenador ou a coordenadora de uma comunidade do interior de Minas possa enfrentar o FMI (Fundo Monetário Internacional) ou cobrar de W. Bush, presidente dos Estados Unidos, a observância do Evangelho. Tanto hoje como naquele tempo, o império tem outros deuses e outras leis!
A experiência humana em que surge e floresce o movimento apocalíptico
O movimento apocalíptico surge exatamente nos períodos em que a história do povo parece estar à deriva, sem controle, ameaçada de desintegrar-se. Mas ele surge não do lado de quem conduz a história, mas sim do lado de quem por ela é esmagado. Aparece do lado de quem está perdido, mas quer continuar a crer.
Diante do mundo ilimitado e ameaçador do império, os pobres experimentavam uma total impossibilidade de interferir no rumo das coisas para transformar a situação. Já não eram donos de nada. Estavam sem nenhum poder num mundo que os explorava e excluía. O “macro” ameaçava esmagar e paralisar o “micro”! Sem ter onde se agarrar, o povo pobre das aldeias da Palestina se defendia e procurava sobreviver reforçando em si a fé de que o Deus dos Profetas continuava sendo o Senhor da história e do mundo! “Deus é grande! Ele saberá realizar a sua promessa! Ele nos salvará!” A fé em Deus assumia a forma de entrega e de abandono. Prevaleciam a experiência de gratuidade e a confiança na promessa divina que garante a derrota do mal e a vitória do bem.
No movimento apocalíptico manifesta-se a experiência de vida e a fé dos pobres e oprimidos sem poder. É a teimosia da fé dos pequenos que não entrega os pontos nem quer deixar morrer a esperança! Esta fé, além de teimosa, é concreta. Ela não agüenta viver muito tempo sem sinais palpáveis e sugestivos. Os apocalípticos inventam formas de crer que são pouco ortodoxos para a elite. Mas são a forma que o povo pobre encontra para não se perder e poder sobreviver. É o que acontecia com o povo nos séculos de imperialismo depois do exílio da Babilônia e é o que está acontecendo hoje em dia aqui na América Latina, onde todos sofremos sob o império neoliberal. Desta necessidade dos pequenos de alimentar sua fé com sinais concretos, é que nasce uma visão do mundo que é própria do movimento apocalíptico.
Eles dividem o mundo em dois planos, o mundo de cima e o mundo de baixo. Para eles, o mundo verdadeiro e definitivo é o mundo de cima, o mundo de Deus. O mundo cá de baixo é passageiro. As coisas que acontecem aqui entre nós, no mundo de baixo, são apenas um reflexo do que acontece no mundo de cima. O seu sentido verdadeiro e definitivo, só o conhece quem recebe revelações da parte de Deus a respeito do que acontece no mundo de cima. Esse poderá ajudar o povo a ler os fatos que estão acontecendo no mundo de baixo. Ou, como diziam naquele tempo, ele é capaz de “tirar o véu”. Apo-calipse é uma palavra grega que significa “tirar o veu” ou “re-velar”. Apocalíptico é aquele que tira o véu e explica o sentido dos fatos, “revela o que deve acontecer em breve” (Ap 1,1).
Esta maneira de concretizar a fé era o que sustentava os pequenos. Era a espiritualidade que lhes dava a paciência histórica para continuar resistindo e, no fim, vencer o opressor pelo cansaço. Eles souberam encontrar os símbolos e as imagens que transmitiam a Boa Nova da presença libertadora de Deus no meio do povo.
Resumindo. Profecia e Apocalipse! Aliança e Promessa! Observância e gratuidade! Dois tipos de experiência humana. Dois lados da mesma medalha, duas espiritualidades, duas maneiras diferentes de expressar e viver a mesma fé: “Deus está conosco! Nós somos o seu povo!” De um lado, a experiência da própria responsabilidade diante da situação do povo desafia as pessoas e provoca nelas o profetismo, a vontade de transformar e o desejo de observar a Aliança. De outro lado, a experiência das próprias limitações frente ao poder opressor gera nas pessoas um sentimento de impotência e, para garantir a sobrevivência, leva-as a confiar na gratuidade e no poder da Promessa. São duas forças profundas da vida humana. Uma deve ajudar a outra para manter o equilíbrio. São como as duas pernas da caminhada: uma sem a outra não anda! Ambas nascem da vida que nos desafia e provoca, e de Deus que nos chama e conduz. Toda vez que uma pensa ser auto-suficiente e exclui a outra, ela se prejudica a si mesma e coloca em risco a caminhada do povo. O profeta que despreza o apocalíptico já não sabe o que é profecia. O apocalíptico que despreza o profeta deixou de ser ele mesmo uma revelação (apocalipse) de Deus para o povo.