“JAMAIS PEDIRIA PARA SAIR”
A história de Moçambique habituou-nos cenários de aparente hostilidade contra a Igreja. Num relatório de 1973 a PIDE sugeria a expulsão de 155 missionários que trabalhavam em todo o território moçambicano.
Em Fevereiro de 1974, foi publicada uma carta denominada “Imperativo de Consciência”, assinada por Dom Manuel Vieira Pinto e todos os missionários combonianos presentes em Moçambique (34 padres, 19 irmãos leigos e 41 irmãs). Essa carta era uma manifestação contra a política colonial, contra a continuação da guerra e contra o silêncio da Igreja Católica em Moçambique. Fruto da polémica instalada, o Governo deu ordem de expulsão a 11 missionários combonianos (nove italianos e dois portugueses) e Dom Manuel Vieira Pinto, que chegou a Lisboa nas vésperas de 25 de Abril. Entre 1974 e 1977, vários bispos moçambicanos pediram para sair das suas dioceses. Vieira Pinto voltou para Nampula.
Na época da revolução, a seguir a independência, a Igreja foi vista como um perigo ou inimigo a abater. Pois, a construção de um Novo Homem nascido da revolução moçambicana, cujo ideal foi consolidado no III Congresso da Frelimo, em 1977, exigia que a sociedade moçambicana deveria estar afastada das crenças consideradas “supersticiosas e obscurantistas” e caberia ao Estado levar ao povo uma perspectiva materialista e científica do mundo. Neste sentido, o governo da Frelimo adoptou uma postura de restrição e perseguição às diversas confissões religiosas no país. Mas antes do Congresso havia igualmente uma política antirreligiosa. Considerava-se que os missionários eram agentes a favor do imperialismo, as Igrejas transformavam os seus ensinamentos em dogmas que escravizavam, e que faziam acreditar que a miséria e a opressão do povo eram algo imutável.
Em 1976 a Conferência Episcopal de Moçambique publicou uma Carta Pastoral onde os bispos destacam que cerca de 600 missionários deixaram o país entre 1975 e 1976, muitos deles por dificuldades de adaptação à nova realidade, por traumas pelos acontecimentos que acompanharam a Revolução, por serem expulsos pelo governo ou impedidos de entrar novamente no país.
Em Junho de 1977 Dom Manuel Vieira Pinto escreveu uma carta onde criticava o ideal de Homem Novo. “(…) Uma coisa é combater o obscurantismo, a superstição, os preconceitos, outra coisa é combater a religião. Confundir, sem mais, obscurantismo e religião é cometer um erro grave. Infelizmente não falta quem o faça, provocando assim na consciência do Povo, particularmente na consciência dos continuadores, novos preconceitos, novas formas de obscurantismo. Também não será correcto confundir a crítica à religião com a negação pura e simples de Deus, ou com a humilhação do homem crente. A intolerância religiosa é uma triste e lamentável ofensa à dignidade do homem”.
Entre os dias 08 e 13 de Setembro de 1977, ocorreu a I Assembleia Nacional de Pastoral na cidade da Beira para encontrar respostas face aos novos tempos. Na época, os fiéis não sabiam como era possível engajar-se na Revolução e praticar a fé. Não sabiam se a filiação ao partido Frelimo significava a negação de Deus. Influenciados pelos ventos de mudança da Igreja Católica, a I Assembleia Nacional de Pastoral tinha a intenção de criar em Moçambique uma Igreja Ministerial, pobre, despojada de seus bens e apoiada na participação de todos os seus membros e não mais no Estado.
Ora, como a história é cíclica, factos do passado voltam a manifestar-se no presente. Aliás, segundo Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), em seu “Historia Magistra Vitae”, a história é a testemunha dos tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mensageira da velhice. Para Cícero, conhecer a história é se deparar com as acções de várias pessoas, independentemente da distância espacial e temporal que a separam. Teria, a história, uma função pedagógica, de instruir o indivíduo a pensar acerca de seu presente e planejar seu futuro tendo como referência o passado. Combinando com essa linha de pensamento, o historiador alemão R. Koselleck (1923-2006), afirma que a história nos deixa livres para repetir os sucessos do passado, ao invés de incorrermos presentemente nos velhos erros.
Por essa razão, a história de antiprofetismo apresentada acima, repete-se ainda com a transferência de Dom Luiz Fernando Lisboa da Diocese de Pemba, na província moçambicana de Cabo Delgado, para a diocese brasileira de Cachoeiro de Itapemirim, no Estado do Espírito Santo, e concede-lhe ainda o título honorífico pessoal de arcebispo. O anúncio foi feito a 11 de Fevereiro último, em comunicado, pela sala de imprensa da Santa Sé.
Como é sabido Dom Luiz Fernando Lisboa foi uma das primeiras vozes a alertar o mundo sobre a situação de Cabo Delgado e destacou-se, nos últimos anos, na defesa das populações desprotegidas. Além disso, no ano passado, foi acusado por indivíduos próximos do Governo de ser apoiante dos insurgentes, talvez isso lhe valeu ser expulso do país.
Portanto, a transferência de Dom Luiz cheira a cor de expulsão diplomática. Porque já foi ameaçado de morte por várias ocasiões. E em certa altura falando do “ciclone humano dos ataques” expressou que ser bispo de Pemba “foi uma experiência de cruz e de dor”. De facto, centenas de pessoas já morreram e milhares estão deslocadas devido à acção de um grupo fundamentalista islâmico do qual pouco se sabe ao certo, mas que terá ligações ao autoproclamado Estado Islâmico.
“Dessa guerra, eu pude tirar muitas lições. A principal delas é a grandeza desse povo que é pobre mas que é muito solidário. Eu vi muitas histórias, ouvi muitas histórias, vi muitas situações e percebi quanto é que, mesmo na pobreza, nós podemos ajudar, nós podemos repartir, partilhar. Nesse tempo de guerra cada família que não era deslocada acolheu uma ou duas ou até três famílias deslocadas, dentro da sua casa, no seu quintal repartindo o pouco que tinha com aqueles que não tinham nada e estavam ainda no desespero, na estrada, sem ter norte. A experiência do povo de Cabo Delgado vai ficar sempre marcada na minha vida” garante Dom Luiz.
É verdade que “a missão é de Deus, não é nossa”. Mas como diz o cantor “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem os poucos caminhos. Mil trilhas nascerão”.
E estamos habituados com a indiferença do governo. Tenta tapar o sol com a peneira. Mas na hora da verdade, tudo aparece a tona e o véu rasga-se ao meio. Assim, depois de muito silêncio face à insegurança e intimidação de jornalistas por parte do Governo, a população, as comunidades e de maneira especial os jornalistas, sentem-se ameaçados e coagidos a silenciar o que vêem e escutam.
O bispo era a voz que se erguia no silêncio desse deserto para denunciar as injustiças e a violação dos direitos humanos. “O que pretendem as autoridades civis e militares criando este clima de secretismo e silêncio? Porque não se deixam ajudar nas investigações por jornalistas corajosos, sérios e responsáveis?” Há uma ligação com o tráfico de órgãos? Faz parte do branqueamento de capitais? Os ataques estão ligados a comércio de pedras preciosas? A nossa província está sendo um corredor de traficantes de bens diversos?” Pergunta o bispo.
É tarefa milenar da Igreja falar e defender a verdade, os direitos das pessoas e isso incomoda quem vive na mentira e pratica corrupção, independentemente da sua proveniência, do Governo ou de organizações adversas. Com efeito, muitos bispos, ao longo da história da Igreja de Moçambique foram acusados, alguns foram perseguidos, alguns foram até expulsos. “Mas a Igreja continua. Sai um bispo, vem outro, é normal isso” defende Dom Luiz.
Kant de Voronha, in Anatomia dos Factos