O Veneno da independência
É sonho de todos que se sentem pessoas viverem livres, independentes, autónomos, etc. Aspiram igualmente viver em segurança e em pleno gozo da paz e de todos os direitos humanos. Mas quanto custa viver independente? O que exige? O que implica?
Era suposto que com a independência Moçambique fosse dos moçambicanos. Ou seja, os moçambicanos gozassem em plenitude o fruto da sua conquista. Que o bem comum não continuasse privado por um punhado de pessoas; que as riquezas do país fossem partilhadas pelos cidadãos; que a lei fosse aplicada a todos indistintamente; que o gozo dos direitos fosso equitativo; que a educação fosse de qualidade para todos cidadãos; que o emprego fosse acessível não somente para alguns afilhados que têm padrinhos poderosos, mas também para os filhos dos enteados desta pátria amada.
Afinal lutamos para continuar oprimidos? Lutamos para continuar analfabetos e no medo? Lutamos para continuar escravos da minoria? Lutamos para continuar refém das decisões egoístas? Lutamos para viver alimentando-nos de balas como carne para canhão? Lutamos para sermos expropriados das nossas terras? Lutamos para que? Qual era o nosso sonho?
Certo dia, Daudo Rafael escreveu: “estamos há 46 anos de independência, mas até agora não deixamos de ser dependentes do ocidente. O governante moçambicano é simples embaixador dos ocidentais porque? Porque deixa de potenciar os hospitais de Moçambique só para quando ficar doente ser levado na diáspora? Porque despreza o seu próprio povo e vai-se entender por duas horas de tempo com o próprio homem que lhe colonizou? Porque vive dependente enquanto tem tudo para viver independente na sua terra? Porque deixa de exigir o estrangeiro instalar sua fábrica aqui no país prefere levar a matéria-prima para fora e depois importar? Porque considera o ocidente como fim de todo o problema que ele tem? Será que temos governantes Maquiavélicos neste país?”
A nossa idade de independência devia-nos orgulhar. Mas estamos longe disso. Parece que usamos caminhos errados para a libertação do país. Investimos na luta para expulsar os colonos. Mas essa táctica ainda prevalece. Moçambique nunca mais deixou de sentir os efeitos da guerra, mesmo em formas parceladas. A instabilidade, a destruição e as mortes por guerra acompanham ininterruptamente a vida dos cidadãos moçambicanos.
Por causa desse fenómeno de guerra interminável, a insegurança reina. Os cidadãos vivem até duvidando da sua própria sombra, como se não houvesse uma autoridade com missão de proteger e garantir a segurança de todos. “Em Moçambique a insegurança está instalada. Não há lugar, nem cidade, nem campo, onde o cidadão se sinta seguro e tenha a sua vida a fluir de forma tranquila, sem a ameaça da sua integridade física ou económica. No campo, instalam-se guerras. Por meio destas guerras mata-se e viola-se os mais básicos direitos humanos da forma mais vil. Nas cidades, instalam-se raptos e assassinatos; na periferia das cidades instala-se o crime organizado. De dia ou de noite, nas cidades, grupos de criminosos desfilam sua classe, matando, ferindo, violando e expropriando bens de forma tranquila, sem o mínimo de medo de repressão de alguma autoridade, porque a autoridade está quase sempre ausente” escreve Dr Paúa.
Esse veneno chamado independência ainda não nos libertou. Mudou o governo, mudou a constituição, mas as acções continuam a colonizar-nos. E o pior colono é aquele que se disfarça como irmão com pele de ovelha e coração de Leão. É um colono que é legitimado pelo voto popular e por um esquema de representação que não representa a ninguém na assembleia da República. Trabalhamos para o inglês ver. Como consequências desse comportamento, multiplicam-se as estruturas, os esquemas, as modalidades e as acções de corrupção em rede. É uma praga que não vai acabar por se transmitir de geração em geração.
Esta onda de “caça só para a própria gaiola” origina desigualdade e desequilíbrio social. Daí que uns vivem na abundância eterna e outros na miséria perpétua. Ou seja “enquanto os políticos esbanjam recursos públicos comprando para si bens que não precisam, fazendo viagens desnecessárias, vivem uma vida de reis, o povo, nas cidades e no campo, morre de pobreza, de desnutrição, de fome, se alimenta de capim, a menos que a sociedade tenha sido abolida e estejamos vivendo numa selva”.
Será que para viver bem em Moçambique é preciso atrelar-se a critérios partidários e regionais? Será que para ser chefe em Moçambique só é possível exibir cartão partidário? Até quando viveremos com o negócio da venda do emprego e o privilégio que se dá às pessoas mais chegadas?
O Mestre e Padre Kwiriwi refere que para ser desmistificado o que muitos não sabem sobre este país é preciso que se crie uma equipa de especialistas de várias áreas de saber para se dedicar no estudo sobre Moçambique e também de forma detalhada sobre cada cidadão.
“Apresento alguns traços que me levam a afirmar que deve haver uma investigação de carácter multidisciplinar.
a) Foram quinhentos anos de colonização, dominação e imposição de culturas diferentes, mas até hoje, tem moçambicanos que não sabem falar a língua portuguesa e resistem expressando-se unicamente em idiomas locais.
b) A dita civilização europeia ficou no papel porque até hoje, Moçambique se pratica a poligamia, algo dito como um crime em países nórdicos.
c) Guerras tribais: para maior controle de territórios e para a imposição da autoridade e poder, os chefes tribais faziam guerras entre si, mas no final do campeonato, tomavam juntos suas bebidas, como a Otheka. Os chefes tribais mantinham laços de amizades e também de vizinhança não se lembrando das guerras. Seus filhos praticavam casamentos interétnicos e a intimidade crescia.
d) Com o início do comércio de escravos, uns tios vendiam seus sobrinhos principalmente os mais indisciplinados mesmo sabendo que o mesmo daria a continuidade da família e do clã ou da tribo. Quando faltasse o que vender, alguns homens preparados para esse tipo de missão, iam roubar meninos noutras regiões. Enquanto a escravidão continuava, crescia também o povo e aos poucos foi povoando o país todo.
e) Desde cedo o povo moçambicano tinha sua religião e sabia dialogar com Deus. Ao usar diferentes nomes fruto de muitas línguas, o povo foi acusado de animista. Porém, o monoteísmo é mais forte em Moçambique que no Ocidente. Com a vinda dos árabes e a dominação colonial, instalaram-se as religiões islâmica e cristã, respectivamente. No entanto, quer o cristão quer o muçulmano, continua sendo moçambicano e a viver no dia-a-dia o ser religioso africano, usando os curandeiros e feiticeiros, etc.
f) Dez anos de luta pela independência: para a surpresa de todos, o tal “inimigo” passou a ser parceiro de cooperação e hoje os filhos dos dirigentes, os assimilados são mais “tugas” que os nativos.
g) Na guerra que durou 16 anos foi vergonhosa. Irmão lutando contra o irmão, em nome da dita democracia, arruinaram o país e mataram seus próprios familiares e vizinhos. A mesma terra que lhe viu a nascer, é a mesma que ele destrói. Ao se tornar chefe na mesma terra que ele próprio vandalizou, vai a União Europeia pedir empréstimo para reconstruir o país”.
Aí está a razão porque Moçambique deve ser estudado por gente de diferentes saberes para avaliar o veneno da independência e as causas do decrescimento do país.
Kant de Voronha, in Anatomia dos Factos