O CONTEXTO MAIS AMPLO DA CONJUNTURA DO IMPERIO ROMANO
Frei Carlos Mesters, Carmelita
O CONTEXTO MAIS AMPLO DA CONJUNTURA DO IMPERIO ROMANO
Depois da morte e ressurreição de Jesus, o evangelho foi se espalhando. Em pouco tempo, a Boa Nova atravessou as fronteiras da Palestina e entrou pelo império romano a dentro: Ásia Menor, Grécia, Itália, Roma. Não foi uma caminhada fácil. Houve muitas dificuldades e perseguições, mas, apesar de tudo, o sol brilhava. O vento era favorável. Aquelas primeiras comunidades tinham uma espiritualidade muito viva, forte e resistente. Eram comunidades pequenas, muito pequenas, perdidas na imensidão do império romano que abarcava o mundo, havia mais de 200 anos.
Aos poucos, porém, o céu se cobria de nuvens. Uma tempestade se armava. Um conflito aberto com o império não podia demorar. A nova maneira de viver e conviver em comunidade, iniciada pelos cristãos, querendo ou não, ameaçava o sistema do império (Cf. At 17,6-7). Uma espiritualidade centrada na partilha de bens ameaça a quem só quer acumular! A vivência da fraternidade mina por baixo o sistema de quem só pensa em si. De fato, uns trinta anos depois da morte de Jesus, o imperador Nero decretou a primeira grande perseguição. Foi apenas o início dos males! Em torno do ano 90, o imperador Domiciano decreta uma nova perseguição. Desta vez mais violenta e mais organizada. Domiciano torturava os cristãos para que abandonassem a fé. Como explicar essa mudança?
Quando as comunidades cristãs iniciam sua caminhada, o império romano ainda não tinha atingido seu apogeu. O império, que estava sendo construído com muita violência, era um aglomerado imenso de reinos, províncias, etnias, povos, cidades, tribos, todos congregados na submissão ao imperador. Em caso de rebeldia não havia perdão. O exército, formado pelas bem treinadas legiões, intervinha e matava sem piedade. O império era uma grande panela de pressão, cuja temperatura começou a subir na segunda metade do primeiro século com risco de explosão. Tudo isto influía na maneira de os cristãos viverem e anunciarem a Boa Nova de Jesus.
O Apocalipse de João surgiu neste período entre os anos 70 e 100. Enumeramos aqui sete fatores que mais de perto interferiram na vida das comunidades cristãs e que estimularam o surgimento de uma nova espiritualidade, capaz de sustentar a fé, a esperança e o amor do povo durante a tempestade e a crise da mudança.
- Variedade de grupos e tendências nas comunidades
De um eucalipto cortado nascem inúmeros galhos e ramos. Do tronco do Crucificado ressuscitaram inúmeros brotos e flores. Desde a sua origem, o cristianismo nasce diversificado. A origem desta variedade está na própria natureza da encarnação e na liberdade do Espírito que atua nas comunidades. A variedade revela a beleza do rosto de Deus. Os fatores que contribuíram para fazer aparecer as diferenças eram muitos: a variedade das culturas em que a Boa Nova se encarnava; a diversidade dos costumes dos povos; as distâncias geográficas; a variedade da história de cada comunidade; os vários centros de irradiação: Jerusalém na Judéia, Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia Menor, Roma na Itália, Alexandria no Norte da África, Corinto na Grécia; o jeito diferente dos missionários e das missionárias: Tiago, Pedro, Paulo, Lídia, Apolo, Maria Madalena, o casal Priscila e Aquila, e tantos outros; a variedade dos problemas que pediam respostas diferentes; as diferenças de classe; as diferentes tomadas de posição frente à política do império romano; a enorme variedade de doutrinas e religiões que invadiam o império.
Além disso, as várias tendências existentes entre os judeus reapareceram nas comunidades cristãs: piedosos (hassidim ou hassideus), essênios, zelotes, fariseus. Por exemplo, alguns ex-fariseus da comunidade de Jerusalém, ligados a Tiago, irmão de Jesus, se mantinham na observância da Lei, sem se misturar com os pagãos (At 15,1-2; Gl 2,7-8; 1,6-10; 9,12). Outros, como Apolo de Alexandria e os doze discípulos que apareceram na comunidade de Éfeso, combinavam o batismo de João Batista com a mensagem de Jesus (At 18,24-26; 19,1-7). Outros como Paulo deixavam para trás a observância rigorista da Lei e com um ardor missionário muito grande tentavam atrair o maior número possível de pagãos.
Mas nem sempre a variedade nascia da vontade de manifestar o Reino. Às vezes, ambições pessoais, medo de ser perseguido, visões diferentes, conflitos e tantas outras tensões e problemas levavam pessoas ou comunidades a acomodar a mensagem às vantagens do momento e a anunciar o Reino conforme tendências e medos não confessados. Isto começou a aparecer sobretudo depois dos anos setenta, quando a infiltração crescente da ideologia do império ia mostrando a fragilidade das comunidades dispersas e fazia sentir a necessidade de uma organização mais consistente para elas poderem sobreviver. Esta variedade, ao mesmo tempo rica e ambígua, transparece no Apocalipse de João, sobretudo nas cartas (Ap 2-3).
- A revolta dos Judeus e a destruição de Jerusalém
Ainda durante a vida de Jesus e sobretudo depois, as explosões populares contra a ocupação romana foram crescendo (Lc 13,1; 23,19; At 5,37; 21,38), novos partidos foram surgindo ou se organizavam: zelotes, sicários. A situação se radicalizava. A incapacidade e a brutalidade dos governadores romanos junto com a corrupção e a luta pelo poder da classe dirigente da Judéia, deixou o povo sem proteção e sem alternativa, e no ano 66 explodiu numa revolta generalizada. Roma perdeu o controle da situação. Estimulados pelas idéias do movimento apocalíptico, muitos viam no levante contra Roma a chegada do Dia de Javé!
Sacerdotes, saduceus e anciãos, forçados a entrar na revolta contra Roma, faziam o possível para manter o controle da situação. Mas pouco adiantou. As legiões romanas vieram e foram reconquistando a Galiléia e a Judéia, à espera do momento oportuno para o assalto final contra Jerusalém. Enquanto isso, dentro da cidade de Jerusalém, grupos rivais lutavam entre si pelo poder. Dois grupos de judeus, porém, não quiseram participar da rebelião: os judeus da linha farisaica e os judeus que tinham aderido à fé em Jesus. Tanto para os fariseus como para os cristãos, a revolta contra Roma não era expressão da chegada do Dia de Javé.
Pouco depois da Páscoa do ano 70, com a cidade de Jerusalém ainda cheia de peregrinos e de gente que nela buscava proteção contra a repressão romana, o general Tito, filho do Imperador Vespasiano, atacou com quatro legiões. O cerco durou vários meses, de maio até agosto. Foi um assédio cruel de muita fome e muitas mortes. Finalmente, Jerusalém foi tomada e totalmente destruída. O templo foi arrasado e, onde antes se ofereciam os sacrifícios a Javé, Tito mandou oferecer sacrifícios em honra de Jupiter ou Zeus, o deus supremo dos romanos. Esta era a “abominação da desolação” de que fala o discurso apocalíptico de Jesus (Mc 13,14). A destruição de Jerusalém foi um abalo para todos, fariseus e cristãos. A extrema crueldade e violência da repressão romana, sem nenhuma piedade, acentuou no povo o sentimento de total impotência diante do poder do império.
- O povo assiste aos golpes militares que abalam o império
Neste mesmo tempo, nos anos 68 a 70, lá em Roma, no centro do poder, no final do governo de Nero, revoltas e golpes militares se sucediam em ritmo acelerado. Em menos de dois anos houve cinco golpes militares e cinco imperadores. A confusão era tanta que parecia o fim do império.
54-68 Nero, imperador: lutas internas pelo poder
64 Primeira grande perseguição das Comunidades cristãs pelo império romano.
66-70 Levante do povo judeu na Palestina contra a ocupação romana
68 Março: o general Vindex lidera uma rebelião na Gália (França)
Abril: o general Galba, imperador, lidera a revolta das legiões na Espanha
Junho: suicídio de Nero
69 Janeiro: o general Otto, imperador, lidera o golpe da guarda pretoriana em Roma
Janeiro: o general Vitélio, imperador, lidera rebelião das legiões na Germânia
Julho: o general Vespasiano lidera rebelião das legiões na Palestina e no Egito e é proclamado imperador
69-79 Vespasiano, imperador. Seu filho Tito assume no Oriente
70 Tito destrói Jerusalém, a Cidade Eterna.
72 Derrota total em Massada dos últimos judeus que resistiam ao império
- A progressiva separação entre Judeus e Cristãos.
O levante dos judeus da Palestina contra Roma, em vez de ser a tão esperada chegada do Dia de Javé, foi a causa da destruição dos grupos que dele tinham participado. Só sobreviveram os dois grupos que não tinham participado: fariseus e cristãos. Terminado o confronto com Roma, ambos se consideravam os legítimos herdeiros da promessa e começaram a lutar entre si pela posse da grande herança que vinha desde Abraão. Assim, a partir do ano 70, cresce a separação entre judeus e cristãos, e o relacionamento entre os dois caminha lentamente para uma ruptura definitiva que foi acontecendo no decorrer do Século II. Esta ruptura entre judeus e cristãos talvez seja um dos acontecimentos mais trágicos de toda a história do Ocidente. Mistério incompreensível! (Rm 9-11).
O trauma que ficou da destruição de Jerusalém provocou em ambos, judeus e cristãos, uma revisão e uma reorganização generalizada. Os fariseus se reagruparam, primeiro em Jamnia na Judéia, depois na Galiléia, e começaram a reorganização do judaísmo em torno da Sinagoga. O rabino Iohanan ben-Zakai fundou a assembléia de Jamnia, onde foram estabelecidas as normas para definir quem é judeu e quem não é; quem pode ser rabino e quem não pode ser. Foi elaborada também a lista dos livros que deviam ser reconhecidos como sagrados, patrimônio da fé judaica. Nesta lista não figuravam os livros escritos ou traduzidos no ambiente da diáspora, nem os do ambiente dos apocalípticos que tinham resistido contra a elite de Jerusalém. Devido à rápida divulgação da Boa Nova de Jesus entre os próprios judeus, a reorganização do judaísmo teve um cunho de defesa contra os judeus cristãos que pretendiam ser os herdeiros das promessas de Deus a Abraão.
Neste mesmo período, também os cristãos se reorganizavam em torno da Igreja. E também entre eles a reorganização se fez, em parte, em oposição aos irmãos judeus que os acusavam de infidelidade à Lei de Deus e os excluíam da sinagoga. Os cristãos aceitaram como inspirados vários livros escritos ou traduzidos no ambiente da diáspora: os dois livros dos Macabeus, as novelas populares de Judite, Tobias, alguns fragmentos de Ester, os livros de Sabedoria, do Eclesiástico e de Baruc e alguns trechos acrescentados ao livro de Daniel: a história de Suzana (Dn 13) e a lenda de Bel e do Dragão (Dn 14). São os assim chamados livros deutero-canônicos. Mas a maior parte da literatura apocalíptica também não entrou no Cânon dos cristãos.
O conflito entre judeus e cristãos repercutiu no conflito entre os cristãos e o império, seja pela influência dos judeus junto às autoridades romanas, seja pela confusão que identificava cristãos e judeus como sendo da mesma religião. Este ambiente polêmico se reflete no Apocalipse (Ap 2,9; 3,9).
- As religiões, o culto ao imperador e a ideologia imperial
Na segunda metade do primeiro século, houve um forte renascimento das nacionalidades e das religiões dos povos subjugados pelo império romano. Eram religiões ou doutrinas de dois tipos, muitas vezes misturadas entre si. Umas de linha mistérica. Mysterion é uma palavra grega que significa segredo, algo escondido que se revela. Para uma pessoa poder entrar em contato com a divindade, estas religiões ofereciam aos seus iniciados uma participação em ritos e cultos secretos. Outras eram de linha gnóstica. Daí vem o nome gnosticismo. Gnose é uma palavra grega que quer dizer conhecimento. Para uma pessoa poder entrar em contato com a divindade, estas religiões ofereciam aos seus iniciados conhecimentos superiores. Havia vários graus de iniciação e de aprofundamento. Era uma tendência religiosa muito divulgada, que criava nos seus membros uma certa consciência de elite. Os grupos gnósticos divulgavam a teoria dualista, onde o espírito, que tem o conhecimento (gnose), é superior à matéria, ao corpo, que abate e deprime o espírito. O ideal é o espírito se libertar do peso do corpo. Por isso os mais exaltados negavam a encarnação, não aceitavam que Jesus tivesse vindo na carne (2Jo 7) e desprezavam o matrimônio (1Tm 4,3) e o trabalho manual (2Ts 3,11).
O crescimento destas religiões com seus cultos e mistérios revela o vazio que existia. O seu avanço representava uma ameaça de desintegração para o império. Para fazer frente a este perigo a propaganda imperial soube usar a própria religiosidade popular como fator de unidade do imenso império. Ela ensinava que a Paz dos Deuses tinha irrompido no mundo através da Pax Romana, cujo promotor divino era o próprio Imperador, chamado Deus et Dominus, Deus e Senhor. Era a religião a serviço dos interesses da ideologia dominante (Ap 13,4.14), a romanização da religião popular!
A propaganda fazia do Imperador e da cidade de Roma seres divinos. A terra inteira deveria adorar ao imperador como se fosse um deus (Ap 13,4.12.14). Ele chegava a ser apresentado como um ressuscitado (Ap 13,3.12.14). A propaganda imperial atingia o povo na vida diária através de muitos canais. Através do comércio, favorecido por uma administração eficiente com cobrança de tributos, taxas e impostos. Através da cultura grega com seu estilo de vida e com a organização característica das suas cidades. Através de ginásios de esporte e jogos olímpicos cada quatro anos. Através da difusão das novas idéias, propagadas pelos filósofos ambulantes gnósticos e outros. Através dos costumes bem populares do Pão e Circo e da distribuição da carne oferecida aos ídolos. Através da estratégia militar e da truculência na repressão aos revoltosos. Através da religião com seu pan-theon, templos, estátuas, práticas de magia, procissões, festas, sua mitologia e o culto aos heróis. Na Ásia Menor chegou-se a eleger um alto funcionário para promover as festas anuais e os jogos pelo aniversário do imperador. Religião e política era uma coisa só. Os capítulos 13, 17 e 18 do Apocalipse de João confirmam e completam este quadro. Eles mostram como a ideologia entrava na vida do povo através das grandes obras de impacto causando admiração (Ap 13,13-14); através do consumo de artigos de luxo para a classe dominante (Ap 18,11-13); através do controle econômico (Ap 13,16-17); através do culto obrigatório ao imperador (Ap 13,15); através da aliança do poder central com as lideranças locais, os reis da terra (Ap 17,12-13); através das armas e da perseguição (Ap 17,6).
Do ponto de vista econômico, os templos funcionavam como bancos e centros financeiros. Além disso, o culto aos ídolos nesses templos empregava muita gente: agricultores para tomar conta das fazendas dos templos e criar os animais para os sacrifícios; comerciantes para a compra e venda destes animais; curtumes da pele dos animais sacrificados e, conseqüentemente, fabricação de pergaminho para livros; fabricação das vestes sagradas, do incenso e outros utensílios necessários para as celebrações e procissões; provedores de lenha; carregadores de água; fabricação de estátuas para vender aos peregrinos; acomodação para os milhares de peregrinos nas inúmeras festas ao longo do ano; preparação das festas; organização dos jogos olímpicos cada quatro anos em honra dos deuses; associações de trabalhadores, cada qual com sua divindade protetora e com suas refeições sagradas. Quem se aventurava a ser contra o culto dos ídolos, corria o perigo de perder o emprego e de ser hostilizado por parentes e amigos, cuja segurança econômica dependia deste sistema do culto aos ídolos (At 19,23-40).
Era quase impossível alguém viver sem participar deste culto, como hoje é muito difícil alguém viver ou sobreviver sem nunca entrar num shoppingcenter, os novos templos do consumo. Por exemplo, na Ásia Menor, havia uma certa concorrência entre as cidades para conseguir o privilégio de ser eleita cidade-campeã do culto ao imperador. A cidade eleita que melhor incentivasse a religião imperial recebia o título de “Cidade Fiel”, era chamada neokoros, e recebia benefícios e vantagens, como foi o caso da cidade de Esmirna. A comunidade cristã de Esmirna procurava ser fiel de outra maneira (Ap 2,10). Para poder ser eleita como Cidade Fiel a cidade tinha que dar prova de que todos os seus habitantes eram a favor do culto ao imperador. Caso na cidade houvesse um grupo contrário, este era perseguido e hostilizado por ser contra o “progresso” da cidade. Aqui está um dos motivos principais da perseguição aos cristãos de que fala o Apocalipse.
- O conflito interno nas comunidades cristãs
No fim do primeiro século, como uma espécie de Nova Era, a religião da Pax Romana junto com as outras tendências religiosas invadiam também as comunidades cristãs produzindo nelas várias tendências e formulações, tanto na doutrina como na liturgia e na organização. Havia os Nicolaítas (Ap 2,6.15), o grupo de Balaão (Ap 2,14), o de Jezabel (Ap 2,20), os “anti-cristos” que não aceitavam a encarnação (1Jo 2,22; 4,2-3; 2Jo 7), os que se apresentavam como judeus e não eram (Ap 2,9; 3,9), os que se apresentavam como apóstolos e não eram (Ap 2,2). Nem tudo estava claro para todos. As fronteiras não eram nítidas. A situação política estava muito confusa.
O problema já vinha de longe. No tempo do apóstolo Paulo, naquelas mesmas comunidades da Grécia e da Ásia, alguns achavam que agora, sendo seguidores e seguidoras de Jesus, já não poderiam participar de nada que estivesse relacionado com o culto aos ídolos, como, por exemplo, comer a carne que vinha dos sacrifícios nos templos ou marcar presença nas celebrações públicas. Outros achavam o contrário. Para estes tais gestos eram neutros. Seria como participar hoje da cerimônia do hasteamento da bandeira nas escolas. Tudo isto criava muitos problemas e tensões, tanto nas comunidades como nas famílias. Nas suas cartas Paulo ajudava as comunidades a olhar o problema do ponto de vista da liberdade da consciência dos filhos de Deus. Assim, dava às pessoas a liberdade para discernir se comiam ou não da carne oferecida aos ídolos (1Cor 8,1-13; 10,23-33; Rm 14,1-8).
Mas nos anos seguintes, de 60 a 90, muita coisa foi mudando. Cresceu o culto ao imperador. Domiciano queria templos dedicados à deusa Roma em todas as cidades e celebração pública das grandes datas do império. O gnosticismo tinha aumentado a sua influência e divulgava a idéia de que a carne oferecida aos ídolos, sendo uma coisa material, não afetava o espírito e, portanto, podia ser comida sem afetar a fé em Jesus. Além disso, depois dos acontecimentos dos anos sessenta, tais como, a perseguição de Nero (64), a morte dos apóstolos Pedro e Paulo (67), e a destruição de Jerusalém (70), as idéias apocalípticas se espalhavam com rapidez entre judeus e cristãos nas comunidades da Grécia e da Ásia e questionavam a facilidade com que as comunidades fundadas por Paulo favoreciam uma certa abertura com relação ao império. O próprio Paulo não tinha sido morto por essas autoridades constituídas, às quais ele mandava obedecer (Rm 13,1)? De fato, a situação não estava clara.
Não deve ter sido fácil discernir o caminho certo. Nem todos pensavam do mesmo jeito. Algumas comunidades para expressar sua fé em Jesus Cristo assumiam elementos, tanto dos gnósticos e mistéricos como da religião do império, por exemplo, o hino ao Cristo cósmico (Ef 3,1-14; Cl 1,15-20). Outras assumiam uma atitude de defesa contra a invasão das doutrinas estranhas, como transparece no Apocalipse, na carta aos Colossenses (Cl 2,8) e nas cartas Pastorais (1Tm 1,3-7; 4,1-2; 2Tm 2,16-18).
As ameaças do império, as pressões da propaganda imperial, o medo de perseguição e de hostilidades (Hb 10,32-34), a falta de uma análise crítica da realidade e a ingenuidade política de muitos cristãos, tudo isso levava alguns a voltar atrás (Hb 6,6) ou a encontrar nas cartas de Paulo e nas idéias gnósticas uma justificativa para não se opôr publicamente ao império e encontrar uma forma de convivência. Se a matéria e o corpo não têm valor, assim diziam os gnósticos, então não tem importância nenhuma você queimar um pouco de incenso em honra do imperador, dobrar os joelhos diante de uma imagem da deusa Roma ou participar de uma orgia sexual numa celebração de uma dessas divindades romanas. Isso é coisa do corpo, da matéria! Não atinge o espírito fiel da pessoa, nem significa renegar a fé em Jesus. Coisas materiais e corporais desse tipo não afetam em nada o espírito que se mantém puro e sem mancha. Assim alguns ensinavam.
O conflito básico com o império não era tanto a perseguição direta e sangrenta, mas sim a quase imperceptível infiltração crescente da ideologia do império na vida diária e no modo de pensar e de viver das comunidades. Isto se concretizava sobretudo na compra da carne oferecida aos ídolos, na participação em algum ato de culto ao imperador ou em alguma procissão em honra das divindades romanas, na aceitação das idéias gnósticas, etc. Lideranças como Balaão (Ap 2,14) e Jezabel (Ap 2,10) favoreciam esta confusão ingênua. A mesma atitude de simpatia com as autoridades do império transparece em alguns outros textos da mesma época. A carta a Tito continua pedindo submissão aos magistrados e às autoridades (Tt 3,1) e outros pedem que se façam pedidos, orações, súplicas e ação de graças por todos os homens, pelos reis e todos que detêm autoridade (1Tm 2,1-2).
Diante deste avanço ameaçador da ideologia imperial e diante da confusão de idéias existente entre os próprios cristãos, a espiritualidade do Apocalipse de João reage com força. Ela não concorda com este tipo de raciocínio, e chama tudo isto de prostituição (Ap 2,14.21).
- O Apocalipse e a perseguição por parte do império
O objetivo real da Pax Romana era legitimar e expandir o domínio romano, favorecer o comércio internacional, garantir a cobrança tranqüila dos impostos e tributos e, assim, intensificar a concentração da riqueza e do poder em Roma. Resultado: escravização crescente nas periferias e excesso de luxo no centro em Roma (Ap 18,9-20). De um lado, sofrimento e revoltas. Do outro, insensibilidade, alienação e afrouxamento dos costumes (Rm 1,18-32). Paulo define bem a situação quando diz: Eles mantêm a verdade prisioneira da injustiça (Rm 1,18).
Enquanto os povos subjugados cumprissem suas obrigações para com o império, não eram molestados. Sua obrigação era pagar o tributo, os impostos e as taxas, não fazer guerra entre si, fornecer soldados para o exército romano, reconhecer a autoridade divina do imperador e cultuar as divindades romanas. O mesmo valia para as comunidades cristãs. Enquanto não prejudicassem os interesses do Estado, podiam viver e crescer. Na hora, porém, em que apresentassem qualquer ameaça para o poder do Estado, começavam a ser perseguidas.
Convém definir melhor o que se entende por perseguição. Na América Latina, de 1960 para cá, não houve perseguição explícita decretada contra os cristãos por parte dos governos dos vários países. Mas nestes mesmos 40 anos, de 1960 até 2000, houve centenas e centenas de mártires na América Latina, a qual, aparentemente, continua sendo um Continente pacato, onde a Igreja vive em paz, sem perseguição da parte dos governos. Assim, mesmo não tendo havido perseguição explícita no fim do primeiro século na época de Domiciano, muita gente foi morta. As alusões no livro do Apocalipse são demasiadas para serem negligenciadas ou desfeitas como sendo de menor importância: Ap 1,9; 2,3.10.13; 6,9-11; 7,13-14; 11,7-8; 12,11.13.17; 13,7.15; 16,6; 17,6; 18,24; 20,4.
Quando falamos em perseguição pelo império romano, não falamos só das grandes perseguições deflagradas pelo governo central de Roma. Estas até que não foram muitas, ao menos no primeiro século. Mas sim de todo tipo de conflito que os cristãos tiveram com o sistema do Império, mantido no mundo inteiro através da observância estrita das leis do império, através da propaganda e da manipulação da religião e através da força das armas. Isto é, conflitos com a polícia, com a justiça, com a opinião pública, com a propaganda, com a religião oficial, com as autoridades locais, com os grupos de interesse ou de pressão, com os vizinhos. A maneira de viver e de conviver dos cristãos, querendo ou não, incomodava aos que preferiam seguir a linha da ideologia dominante do império e, por isso mesmo, era causa de hostilidades e de perseguições de todo tipo. Os cristãos viviam na contramão da Pax Romana e do culto ao Imperador. A propaganda dizia: O imperador é Deus e Senhor. Os cristãos diziam: Jesus é o “Rei dos reis, Senhor dos senhores” (Ap 19,16). No livro dos Atos, mesmo não havendo um conflito aberto com o império, nele já aparece a semente da futura perseguição, a saber, a facilidade com que as instituições do império podiam ser utilizadas contra os que defendiam a justiça e a verdade (At 16,19-23; 17,5-9.13-14).
Como conseqüência desta pressão ideológica cada vez mais forte, havia também perseguição sangrenta. Juntando todos os indícios do Apocalipse a este respeito, obtém-se um quadro de muita gravidade, em que as pessoas corriam perigo de vida pelo simples fato de serem cristãs: em Pérgamo houve o martírio de Antipas (2,13); a comunidade de Éfeso era perseguida por causa do Nome de Jesus (Ap 2,3); na comunidade de Esmirna, alguns já foram presos (Ap 2,10); a de Filadélfia, apesar de fraca, não renegou o nome (Ap 3,8); o próprio João, no momento de escrever sua mensagem, estava preso (Ap 1,9); no quinto selo, que reflete a situação das comunidades, ouve-se o grito dos que foram mortos por causa do testemunho que deram da Palavra. Era perigoso e difícil sustentar a fé. O controle do império era total. A repressão era tanta, que ninguém podia escapar da sua vigilância (Ap 13,16). Quem não apoiava o regime, era excluído do mercado e não podia vender nem comprar nada (Ap 13,17; Hb 10,32-35). Quem não concordava com as idéias da ideologia era perseguido. Fala-se de comercialização de vidas humanas (Ap 18,13) e de perseguição até à morte (Ap 12,11.13.17; 13,7.15; 16,6; 17,6; 18,24; 20,4).
Esta era a conjuntura no fim do primeiro século. Assim, com a chegada do fim do primeiro século, parecia ter chegado também o fim da caminhada das comunidades. Todas as portas estavam fechadas. Todo o poder do mundo se voltava contra os cristãos. Muitos abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do imperio. Na comunidade se dizia: “Jesus é o SENHOR!” Mas lá fora, quem mandava mesmo como senhor todo-poderoso era o imperador de Roma! Ora, é nesta situação confusa de perseguição, em que tudo parecia perdido, que foi feita a redação final do Apocalipse de João.