Não pode haver justiça social a partir de desigualdades

Por Dr Deolindo Paúa
Do mesmo modo que não se podem esperar mangas ao semear girassol, nem esperar que surjam maçãs num limoeiro, também não se pode esperar que se instale no nosso país justiça social a partir de acções que multiplicam desigualdades entre as pessoas.
A nossa Constituição da República, no seu artigo 1º estabelece que Moçambique é um Estado de justiça social. No artigo 35 faz derivar essa justiça da igualdade entre os moçambicanos. Uma feliz combinação que, se efectivada, pode tornar o país num exemplo de respeito aos direitos humanos. Entretanto, quem é moçambicano, ou vive em Moçambique, sabe que até aqui, 46 anos depois da independência, a justiça social continua sendo inalcançável. As pessoas mais ricas são as mesmas de sempre e que continuam oferecendo oportunidades de riqueza apenas às pessoas do seu círculo familiar ou de amizades; as pessoas pobres, cada vez mais pobres, também são as mesmas desde a independência, que continuam sendo obrigadas a ser pobres ao perder oportunidade de emprego e de riqueza em favor dos cada vez mais ricos. Isto pode estar relacionado com a desigualdade enraizada em três contextos: regional ou tribal, política e profissional.
Desigualdade regional
A razão da luta armada pela independência foi a descriminação em todos os sentidos, que era imposta pelo colono ao nativo. A luta foi movida pelo desejo de devolver dignidade aos moçambicanos. Por isso, os primeiros líderes da Frelimo (aquela Frelimo do passado e que se confundia com o povo) e do Estado tinham como compromisso a implantação da igualdade como pressuposto da unidade nacional. Mas por sermos africanos e termos constituído inevitavelmente um país multicultural, essa igualdade devia assentar sobre o equilíbrio entre as várias culturas. Infelizmente esse objectivo parece continuar a ser um sonho.
De facto, é preocupante ouvir em conversas públicas do dia-a-dia cidadãos afirmarem que os melhores edifícios de escolas e hospitais estão concentrados numa determinada região do país e não nas outras; que os melhores cargos públicos são ocupados por gente de determinada região em detrimento de gente de outra região; e que os melhores investimentos económicos são feitos só numa região, deixando-se para outras regiões investimentos menos importantes. São assustadores estes pensamentos regionalistas. Mas mais assustadora é a ligação destes preconceitos com a realidade. Num projecto de unidade nacional o desenvolvimento deveria ser igual em todas as províncias. Mas o modo como se desenvolve a qualidade de vida e das infrastruturas na capital do país em forma desigual as outras províncias, faz valer as especulações de regionalismo.
Assimetrias regionais, culturais e tribais nunca levarão a justiça social porque são fenómenos que solidificam a desigualdade.
Desigualdade política
Hoje, em Moçambique, fazer política é a forma mais rápida de criar condições de sobrevivência e até mesmo de se ser rico. De facto, é curioso o facto de que os empresários mais bem-sucedidos tenham passagem pela política ou pelo menos tenham ligação com políticos influentes. Não é por acaso que vemos pessoas se esforçarem para assumir cargos políticos. Já não importa a capacidade de exercer o cargo que almejam, mas apenas a finalidade que é o acesso fácil aos recursos que facilitam a riqueza. Por isso vemos municípios governados por oportunistas, governos infestados por ministros incompetentes, Assembleia da República cheia de deputados improdutivos e incompetentes.
Mas mais grave é que o partido mais forte num município ou no país inteiro controla a vontade dos cidadãos. Quem milita no partido que governa tem as melhores chances de ascender a cargos de chefia, de conseguir emprego, de trabalhar em instituições bem localizadas, de mudar de carreira, de obter financiamento para o seu projecto empresarial e, enfim, de sobreviver melhor que os outros cidadãos. Por isso cargos de chefia como directores de escolas, chefes dos postos administrativos, administradores distritais, vereadores, governadores provinciais, directores provinciais, ministros, etc., não são ocupados necessariamente por competentes, mas por quem gritou mais durante a campanha eleitoral. O critério de selecção para assumir determinados cargos já não é apenas o de ser cidadão moçambicano, mas também e sobretudo o de ser militante. Se um cidadão não milita no partido que governa então está condenado ao sofrimento. Ora, se a política ao invés de unir e aglutinar para coordenar esforços de desenvolvimento, divide e cria preferências entre uns e outros cidadãos da mesma pátria, então esse partido não é agente de desenvolvimento, mas de desigualdade e de injustiça.
Desigualdade profissional
Seria bom que, tal como em países normais, a Administração Pública tivesse critérios de tratamento igual para os seus funcionários. Mas isso nem sempre acontece.
Por exemplo, o professor não tem os mesmos direitos que o médico, nem o médico os mesmos privilégios que o contabilista, muito menos este as mesmas regalias que o alfandegário, e assim sucessivamente. Há quem diga que essas diferenças se justificam pela natureza do trabalho que cada grupo de profissionais exerce. Pode ser perceptível. Mas, respeitando as especificidades de cada profissão, julgo que há exageros legais que promovem a desigualdade.
No passado mês de Maio estava em discussão o estatuto que atribuía regalias e benefícios ao funcionário parlamentar. A justificação da Assembleia da República para aprovar (por consenso entre as três bancadas) o regime especial de regalias do funcionário da Assembleia da República é de que havia necessidade de conferir dignidade e oferecer auxílio pelo complexo trabalho que se exerce. Na situação penosa do funcionário público moçambicano qualquer aumento salarial deveria ser motivador, justo e obrigatório. Entretanto, este ajuste peca por ser selectivo. Por isso as perguntas que insistentemente são feitas não são sobre a justeza ou não das regalias. Mas têm a ver com o facto de se ter ignorado a situação de trabalho extremamente degradado do professor e do médico, por exemplo, sobretudo nas zonas recônditas. Quer dizer que qualquer justificação que não leve em conta o sacrifício de quem usa recursos e esforço pessoal para desempenhar a sua actividade profissional é equivocada.
Se queremos um Estado de justiça social temos que ser capazes de assumir as consequências dessa expressão. A justiça social constrói-se a partir da igualdade entre as pessoas com as mais variadas diferenças, sobretudo no contexto de um país multicolor como o nosso.