O Labirinto do amor líquido

Dizem que antigamente as pessoas se casavam verdadeiramente até envelheciam juntas. O casamento começava em casa, na família e se perpetuava na sociedade. Exemplo disso, são as várias famílias que actualmente celebram 30, 40 e ou 50 anos de casamento ou até mais. Não significa ausência de problemas durante esse período de vida a dois, mas sim capacidade de amar o outro de todo coração, na íntegra, sem parcelas. Ou seja, capacidade de governar a relação de amor, capacidade de encarar as dificuldades e desafios do relacionamento.
Pelo contrário, na actualidade casa-se por conveniência: se tem dinheiro ou não, se é de família que respira bom ar ou carente. Os casamentos de hoje começam na rua e terminam na rua. O namoro nasce nas redes sociais: Whatsapp, facebook, Instagram, Twiter, etc. É um namoro muitas vezes à distância e que se faz com uma pessoa fantasma, que não se conhece, mas que produz ilusões frequentes entre jovens.
Por essas vias uns já namoraram com pessoas fora da sua idade ou sendo mais velhas ou ainda mais novas. Dizia-se antes que isso provocava hérnia, mas parece que nos dias que correm as pessoas mataram todos os tabus. Por isso, crescem deficientes e as doenças estranhas nascem desordenadamente e daí se espantam dizendo: isto não acontecia antigamente.
Hoje em dia muitas pessoas não querem comprometer-se. Têm medo de ter uma única mulher ou um homem para toda vida. As relações são livres, sem compromisso, sem duração, sem raízes, sem cor, sem profundidade. Portanto, são relacionamentos de máscaras, cheios de segredos, trancados com muitos códigos. E onde começam a nascer segredos dá-se espaço e lugar para o demónio sentar ao meio deles, dividi-los e começar a reinar. Emergem, então, as desconfianças, infidelidades, ciúmes, invejas, traições etc. Tudo isso vai culminar na separação inesperada. Consequentemente nascerá o labirinto do amor líquido.
Nas suas incursões no mundo do pensamento, Zygmunt Bauman escreveu vários livros nos quais fala claramente do “O amor líquido”, de “tempos líquidos”, de “modernidade líquida”, de tudo que constitui o tecido social liquidamente corrompido pela contemporaneidade.
No labirinto do amor líquido descobrimos “o homem sem qualidades”, de Robert Musil. Na sociedade actual, o indivíduo age por si mesmo, em seu próprio nome, sem o apoio da tradição e sem os impasses da colectividade. Corre-se, até, o grave risco de assumir o ideal de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir que decidiram um relacionamento livre/líquido. Vários relacionamentos de hoje conectam-se, mas, sem o compromisso de permanência, vemos o surgimento de uma subjectividade moderna sem qualidade, liquefeita, fútil e doentia.
Nos casamentos modernos, consolidados nas redes sociais, vemos a interação, os encontros sem comprometimento que desobedecem à lei da gravidade, a ausência de peso. As relações amorosas, os vínculos familiares e até mesmo os relacionamentos em “redes”, segundo Bauman, estão se tornando cada vez mais flexíveis e volúveis.
Portanto, a lei que move os relacionamentos tornou-se um objecto de consumo cada vez mais rápido, fácil e descartável. O consumidor está sempre com mais fome e sente profunda insatisfação o tempo todo. Por isso se faz o desporto sexual onde os adeptos ganham o prazer sem momentâneo. Aliás, os relacionamentos seguem a lógica das mercadorias, ou seja, se existe algum defeito, podem ser trocadas. Por outro lado, porém, não existe a garantia de que gostem do novo produto. Veio com algum defeito? Troca-se, assim ninguém sofre. No entanto, as consequências desse novo padrão de relação social fragiliza a confiança no próximo. Em outras palavras, poderíamos dizer que os relacionamentos humanos correm o risco de extinção. Vive-se de forma descartável e o importante nisso são as trocas materiais “paga-me e te dou”.
No labirinto do amor líquido a procriação é facultativa porque ter filhos é um investimento oneroso. O importante é curtir a vida e curtir sem compromisso. Julga-se que para manter a finura, a elegância, o peito firme, a viola em forma é mais fácil adoptar um filho/filha, que aturar 9 meses de gestação. A família é comprada porque tudo pode ser descartável. O parentesco é onlinizado. Os encontros físicos entre membros de família começam a desaparecer porque investe-se em reuniões online, pior ainda com a desculpa do Coronavírus.
Quando as relações apresentam dificuldades é só manter-se distante delas. E é nessa superficialidade que navegamos. As relações sólidas estão cada vez mais raras e mais fracas ou inexistentes. Quando aparece um problema, a relação simplesmente se desfaz, simplesmente se rompe. Não há esforços de resgate, não há recuperação. É automático efácil assim. Não se pode aquecer a cabeça a resolver problemas de relacionamento. Os padrinhos só servem para o dia de casamento milionário. Os tios são remetidos a gerir seus próprios problemas.
As pessoas de hoje, no seu relacionamento, enfrentam o “medo” e imaturidade pessoal, em que não é possível conceber uma relação sólida, autêntica e estável, com um projeto futuro. Em virtude disso, o individualismo procura apenas satisfazer as necessidades pontuais com um começo e um fim. Vive-se de emoções que não podemos recordar e que nos escapam rapidamente das mãos, até desaparecer completamente. Nos chapa-cem e outros locais de convivência é notável, como aponta Bauman, comportamentos de mixofilia, que é o prazer de estar num ambiente estimulante, e de mixofobia, que é o seu oposto, ou seja, é o medo de misturar-se. Os encontros são virtuais, mais do que físicos.
Tudo isso não fica impune. A sociedade materialista, nos dias que correm, preserva o seu casamento na base dos bens materiais. Homem sem dinheiro não tem valor. Mulher sem dinheiro não tem garantia de lar. E assim o amor entra em jogo de negociação. Amam-se as coisas e não as pessoas. As pessoas apenas se gostam por ter dinheiro e não por amor que brota do fundo dos seus corações.
Nos casamentos actuais as pessoas pensam que o valor do casamento depende da vida estável dos cônjuges: uma economia altamente estável e um emprego apreciável. Os desempregados não podem casar? Quem nos garante que os ricos têm o melhor casamento do mundo? É ilusão pensar que para viver feliz é preciso ter rios de dinheiro. Um casamento que se fundamenta no dinheiro não dura. Quando desaparece o dinheiro, desaparece o amor e as pessoas suportam momentos terríveis de angústia.
É verdade que o dinheiro pode ajudar na vida dos casais. Mas o dinheiro só serve para fechar algumas necessidades, mas não pode preencher a estabilidade do casamento. Pois, o compromisso de amor acontece na alegria e na tristeza, nas dificuldades e nas felicidades. Na aridez e na abundância, na saúde e na doença. Daí que não se pode olhar somente o casamento nos momentos fácies.
Embora custe, é preciso assegurar com garras e dentes o próprio casamento. A falta de dinheiro não pode ser motivo de falta de respeito, desunião, brigas intermináveis, etc. Quem tem problemas no seu matrimónio, não desista. Lembre-se que casamento sem cumplicidade, sem oração, sem perdão, sem sinceridade, sem fidelidade, sem reciprocidade, sem comunhão, sem partilha, sem diálogo, sem respeito mútuo, é um casamento sem futuro.
Por Kant de Voronha, in Anatomia dos Factos