46 anos depois: entre sonhos e pesadelos de um país (in) dependente

46 anos depois: entre sonhos e pesadelos de um país (in) dependente

Há 46 anos ter o direito de gerir a nossa pátria foi a maior das conquistas que conseguimos com a independência Nacional. Mas uma gestão justa, inclusiva e transparente continua sendo um desafio e uma nova forma de opressão contra a qual precisamos de travar uma nova luta de independência Nacional.

 

Ainda não estamos independentes

Há alguns anos que insisto, neste espaço da Revista Vida Nova, que ainda não estamos independentes. Ou talvez, a nossa independência segue uma definição que não é a mais lógica. Numa das edições desta revista, propus que no dia 25 de Junho de 1975 tínhamos apenas, infelizmente, realizado o receio de Samora: apenas substituímos a cor da pele do nosso colono, mas a colonização ainda continua. Confesso que o meu desejo é um dia acordar e descobrir que estou enganado, ao pensar assim. Mas infelizmente, a cada dia, cada celebração de mais um aniversário da nossa independência prova que estou mais próximo da verdade do que do engano. Propus também que o que nos levou à luta de libertação era o racismo, a opressão, a discriminação, a expropriação de terra por estranhos, problemas que ainda continuam calcados na nossa pátria.

Quem pode negar que estes problemas todos ainda não são do passado? Os problemas que nos levaram à luta de libertação Nacional ainda permanecem vivos na nossa sociedade de hoje. 46 anos depois ainda não conseguimos o mais básico: construir o sonho de unidade nacional. Até sobre isto enfrentamos problemas. Continuamos nos tratando diferente, discriminadamente: entre os do norte e os do centro, entre os pobres e os ricos, entre brancos, negros e os mulatos, entre os de um partido e os do outro, entre os de uma região do país e os da outra. Por razões que conhecemos, mas não queremos assumir e resolver, continuamos mais desunidos do que na época colonial.

 

Justiça e unidade nacional

O meu sonho para um Moçambique independente, que tenho certeza que também é sonho de muitos moçambicanos, tem um perfil de justiça e de unidade nacional. Sobre uma Assembleia da República infestada de deputados interesseiros, incompetentes e profundamente comprometidos com seus partidos do que com a causa do povo, o meu sonho é um dia vê-la responsável, dedicada e que se identifica com um povo sofredor, um povo que anseia pela mudança para o bem-estar. A Assembleia da República representa (ou devia representar) a soberania do povo. Como tal, deve revestir-se dos desejos e anseios desse povo representando-o no espírito e na letra. Não é idónea uma Assembleia da República como a nossa cujos deputados, alheios a realidade da pobreza do povo, legislam em benefício próprio, atribuindo a si mesmos regalias que levam a um luxo que não se adequa a realidade de pobreza do país.

Sobre uma presidência da República com histórico problemático, que insiste há décadas em governar à margem da vontade popular, protegendo a corrupção e viabilizando mais os negócios da elite do que o bem-estar popular, o sonho do modelo ideal de independência de qualquer moçambicano é ver uma gestão pública justa, que atribua e distribua bens segundo as necessidades reais do povo. Para o nível de pobreza do nosso povo, a independência não pode continuar a ser uma ideia, um sonho de um futuro que nunca chega. A independência precisa de ser realizada à mesa e no tecto de cada moçambicano. Uma presidência cujo foco é endividar o país para viabilizar negócios partidários ou de grupos, não se adequa a nossa realidade como povo pobre e oprimido a séculos. Sobre o funcionamento do aparelho judiciário politizado e corrompido, o sonho que os moçambicanos arrastam desde a luta pela independência é o de haver julgamentos justos e um corpo jurídico comprometido com a verdade e com a sua ligação com a sentença. Um aparelho judiciário comprometido pelo poder político e que funciona obedecendo a um comando económico e político é discriminador e contrário ao espírito da nossa existência como povo e como Estado soberano. Uma justiça que prende pequenos, os mais pobres e protege grandes criminosos deveria pertencer a época colonial e não a esta a que chamamos de época da independência.

 

Ainda estamos no tempo colonial

Sobre a política de emprego, não há dúvidas que ainda estamos no tempo colonial. A falta de emprego, provocada pela ausência de políticas concretas para a sua promoção, aliada à corrupção, agrava a péssima situação económica dos moçambicanos. Atravessamos uma época em que o acesso ao emprego obedece a um critério criminoso. Só tem acesso ao emprego quem tiver um amigo ou familiar com influência necessária para manipular o sistema a seu favor. Outra possibilidade de acesso ao emprego é o pagamento de valores a quem possa concedê-lo. Atingimos um nível assustador no nosso país sobre corrupção no acesso ao emprego tanto que os valores a pagar para aceder a cada categoria profissional são públicos. O pagamento para o acesso ao emprego é uma prática institucionalizada no nosso país. Sem receio nem remorso, os preços para o acesso às vagas são ditos nos corredores das instituições como se de mercadoria se tratasse. Praticamente, cada candidato sabe quanto, de acordo com o seu nível académico ou profissional, deve despender para conseguir um emprego. Enquanto os políticos proliferam em discursos de combate a corrupção, nas instituições, o negócio se normaliza de forma assustadora. Não se pode dizer que este era o sonho da independência dos moçambicanos.

Sobre o direito à terra para a habitação e agricultura, precisamos de dizer que estamos ainda longe de sermos independentes. Toda a gente sabe que, apesar da Constituição da República de Moçambique referir que a terra em Moçambique é propriedade do Estado e ela não se compra, todo o moçambicano sabe que na hora de procurar habitação deve comprar um terreno. 46 anos de independência depois, não há política estatal de distribuição de espaços de habitação para jovens. A falta desta política provoca uma corrida ao mercado ilegal para a aquisição de terrenos. Nesta corrida os mais prejudicados são sempre os mais pobres que não têm condições de competir no mercado de terrenos, sobretudo nas grandes cidades. Que sentido tem a independência num país onde os mais pobres não têm o direito a habitação?

Sobre a segurança, penso que o nosso sistema é discriminador. Moçambique está se tornando no país mais insegure que se pode imaginar. Passamos da guerra que caracteriza o meio rural ao crime que se normaliza nas cidades. A mais básica segurança para os cidadãos é inexistente. A polícia altamente formada para a protecção é alocada para as elites, como se houvesse moçambicanos de primeira qualidade e os de segunda. O povo está condenado a criar a própria segurança numa situação que denuncia a ausência do estado. A justiça pelas próprias mãos ganha mais espaço cada vez que a insegurança se instala. Se não há segurança será que se pode falar da existência de um Estado? Um dos principais elementos que justificam a existência de um Estado é a garantia da segurança aos seus cidadãos. Estaremos seguros como moçambicanos?

 

Sistema de saúde deficiente

Num sistema de saúde deficiente não se faz saúde de qualidade. No tempo colonial a saúde de qualidade era reservada à gente de elite, branca. Hoje, a escassez de hospitais leva-nos de volta à época colonial. O direito à saúde de qualidade é reservado aos ricos, novos brancos. E os pobres? Que se virem! Vemos uma tendência política de construir edifícios a que se chama de hospitais. Mas quantos deles têm condições para atender aos pacientes? Quem passa pelos grandes hospitais deste país sabe que falta o medicamento básico. O tratamento de qualidade é reservado a quem mais paga. Os melhores medicamentos estão disponíveis nas farmácias privadas e a preços que só os que possuem recursos podem pagar. Neste modelo de sistema de saúde, os pobres são descriminados. Haveria alguma independência num país extremamente elitista, discriminador e inseguro? Na expressão “a luta continua!” de Samora Machel percebe-se que a luta pela independência mais penosa é a que temos de travar contra um colono mais difícil, o colono que é nosso irmão. Essa luta para a realização do nosso sonho da verdadeira independência só será vencida não por guerreiros de armas em punho, mas por guerreiros cuja arma é do exercício da cidadania activa.

Por Dr. Deolindo Paúa

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