CRONICANDO: PESSOAS DE COSTAS QUENTES
Repetidas vezes ouvi e oiço dizer que “Cada um por si e Deus por todos”.
Se por um lado isto contribui para o predominante desequilíbrio social entre a minoria cada vez mais rica e a maioria de pobres cada vez mais empobrecidos, por outro lado, alimenta o espírito de nepotismo e a crescente corrupção. Cada um quer ser primeiro e o mais importante. E a cadeia é longa. Quem se beneficia disso são os socialmente bem posicionados. E quem fica prejudicado são os pobres e desconhecidos.
Penso que nas nossas sociedades aplica-se mal a palavra padrinho. Ao invés de ser o nosso conselheiro, muitas vezes o padrinho aparece como advogado defendendo até em situações de pecado grave. Há padrinhos do hospital, padrinhos do banco, padrinhos dos ritos de iniciação, padrinhos dos sacramentos, padrinhos do registo civil, padrinhos do bairro, padrinhos da escola, padrinhos da cadeia, padrinhos da barraca, padrinhos das dívidas ocultas, padrinhos de etc., padrinhos de tudo o que há debaixo do céu.
E só me falta ver padrinhos visíveis do cemitério. Será que ninguém gosta de defender os mortos? Aliás, mesmo no cemitério há padrinhos para garantir lugar onde cavar a sepultura até nos cemitérios oficialmente fechados. É certamente isto que nos pode provar que cada coisa tem o seu padrinho.
Mas são as ditas pessoas de costas quentes que aumentam o número de padrinhos. Geralmente, essas pessoas, não querendo fazer bicha por se acharem mais ocupadas e importantes que as outras, suplantam os outros, passam-lhes a perna e são atendidas imediatamente. O grito silencioso dos pobres é quase inaudível.
Pena é que não sabem que o coração dos outros fica dolorido com esse tipo de comportamento que revela falta de educação e de humanismo. Somos iguais em direitos. Não há motivos de nos pisarmos em vão.
Sim!!! De acordo com o artigo 35 da Constituição, “todos os cidadãos são iguais perante a lei e gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, a sua profissão ou a sua preferência política.
A realidade que vemos todos os dias, no entanto, nos apresenta esse artigo como mais uma utopia criada para que nos enganemos e nos deixemos levar pelas condições e situações de conformismo.
Essa afirmação nos permite, muitas vezes, tolerar todos os dias as diferenças que vemos, seja no noticiário, seja ao vivo, das discrepâncias criadas em relação a factos e pessoas, não conseguindo convencer muitas pessoas da desigualdade que temos em nosso país.
E isso tudo, por que motivo? Na vivência comum do dia-a-dia, podemos entender que diferenças podem ocorrer em vista de um sistema criado por seres humanos que, naturalmente, são falhanços, não são perfeitos.
Em nossa sociedade os que não têm costas quentes são postos na cadeia e até podem desaparecer ou apodrecer lá mesmo sem o mínimo de julgamento ou abertura do processo criminal. Por isso mesmo, as cadeias moçambicanas são lotadas por pessoas que roubam galinhas, artigos de vestuário, etc. Mas os que possuem costas quentes não conhecem o caminho da esquadra. Se eles cometerem crime, têm advogados que os inocentam à custa de avultadas somas de dinheiro.
As pessoas de costas quentes podem até matar, corromper, defraudar a nação inteira, ninguém lhes toca porque têm os seus padrinhos vitalícios. O corruptor fica livre e o corrompido entra na cadeia. É a lei da apadrinhagem moçambicana.
Podemos crer na igualdade, sim, a partir do momento em que tivermos diante de nossos olhos o resultado incontestável para os delitos, quando tivermos a garantia de que, enquanto estamos à nossa mesa, matando a nossa fome, todos os moçambicanos estarão na mesma condição; ou quando tivermos a certeza de que não haverá falta de vaga numa creche infantil para aquela empregada doméstica que trabalha todos os dias em nossa casa para nos satisfazer as pequenas vontades; ou quando entendermos que a democracia entende que todos são iguais perante a lei, eliminando aqueles que se consideram mais iguais que os iguais.
Seremos perfeitamente iguais quando fugirmos das condições estabelecidas na “Revolução dos Bichos” (George Orwell) e nos encontrarmos frente a frente com a “Utopia” (Thomas More). Ou, enfim, quando estivermos preparados para viver efectivamente numa “República” (Platão).
E aqueles que têm costas arrefecidas quando é que serão reconhecidos como merecendo atendimento rápido? Será que há um lugar onde não há costas quentes? Onde? Não sei se existe. Mesmo para arrumar um cadáver numa gaveta melhor na casa mortuária é preciso costas quentes.
Tenho medos que nos queimem com as vossas costas esquentadas. Quem nos livrará disso? Começa contigo! E mais não disse!
Por Kant de Voronha, in Anatomia dos factos