Os desafios da governação 2020-2024

Retoma a colaboração com a VN o pesquisador político, Tomás Selemane, que vai analisar, no começo dum novo ciclo de governação, os principais desafios que ela deverá enfrentar no período 2020-2024.
É evidente que os desafios da governação de Moçambique são vários. Ainda assim, existem aqueles desafios que são mais fundamentais do que os outros, e existem também aqueles desafios que são peculiares deste período. São esses que me proponho abordar nas linhas que se seguem.
O antecedente
Este ciclo de governação foi antecedido de “acordos de paz” que se pretendia que fossem o culminar das desavenças entre o governo da Frelimo e o maior partido da oposição, a Renamo. Os tais acordos, um assinado na Serra da Gorongosa e outro na desconhecida Praça da Paz em Maputo, serviram de sinal positivo para a realização das últimas eleições gerais (legislativas, presidenciais e provinciais) havidas no país a 15 de Outubro de 2019.
A opinião pública moçambicana tem sido unânime no sentimento de insatisfação com os referidos acordos, porque não resultaram de uma discussão dos problemas que afligem o país e que conduziram ao conflito que tornou necessários os tais acordos.
As razões de fundo
Vejamos duas razões de fundo: primeira, não houve discussão e muito menos medidas concretas para garantir a integridade, justeza e transparência das eleições.
Segunda razão de fundo: não houve discussão nem soluções para o problema da partidarização do aparelho do Estado. Eu entendo a partidarização como o mecanismo que limita o acesso aos altos órgãos do Estado (por exemplo, Conselho Constitucional, as diversas Magistraturas, Assembleia da República e Assembleias Provinciais) às pessoas ligadas aos partidos políticos.
Assim, com “acordos de paz” precários era expectável que eles não passassem de letra morta nos papéis onde foram estampados e assinados. Era por isso expectável, embora tenha superado a imaginação de muitos moçambicanos, o caos generalizado que foram as últimas eleições. Este cenário aconteceu e voltará a acontecer enquanto o país não resolver os principais desafios, de fundo, que a meu ver são três, conforme explico a seguir.
Desafios a superar
Primeiro desafio de fundo, a reconciliação nacional (primeiro dentro de cada partido político, de cada confissão religiosa, ou cada grupo étnico) entre os moçambicanos de diferentes orientações políticas, entre os membros de diferentes partidos políticos e aqueles não filiados a algum partido político, que são a maioria da população moçambicana, conforme demonstrou o último Censo de 2017.
Segundo desafio de fundo, a paz. O fim de quaisquer hostilidades perpetradas como resposta a diferenças de opinião e de orientação política. Mais do que o calar das armas, a sociedade moçambicana precisa, em primeiro lugar, da paz sem “acordos de paz”, da tolerância, do respeito mútuo, da consideração das pessoas pelo simples facto de serem pessoas, e nunca por serem de um ou de outro partido político.
O terceiro desafio de fundo, que decorre dos primeiros dois é a democracia no seu sentido mais amplo. Não me refiro à democracia apenas enquanto sistema que permite realização de eleições regulares, mas mais do que isso: enquanto sistema que permite uma convivência sã entre vencedores e vencidos das eleições – a começar por dentro dos partidos políticos – passando para fora deles. Refiro-me à democracia que concebe o Estado como entidade suprapartidária ao serviço de todos os cidadãos independentemente da sua filiação partidária, origem étnica, racial, posição social e económica.
Como disse, o país tem muitos outros desafios: o desemprego; as desigualdades; os ataques em Cabo Delgado; o contínuo crescente custo de vida; a insuficiência de escolas e hospitais associada à má prestação dos seus serviços; a insuficiência de água potável; a fome e a desnutrição crónica, e muito mais.
Sem reconciliação, paz e democracia, o caminho é em subida
Ora, o meu argumento central é este: enquanto a sociedade moçambicana não se reconciliar, não tiver paz e não abraçar a democracia nos sentidos em que expliquei ao longo deste texto, será muito difícil superar os outros problemas como, por exemplo, os ataques armados, a fome, o desemprego, a saúde ou a educação. Porque sem reconciliação geral (não somente entre diferentes partidos políticos, mas começando por dentro de cada partido político), sem paz (para além dos acordos assinados entre dois dirigentes partidários) e sem democracia (no sentido de aceitação e respeito de quem consideramos diferente de nós), os ganhos do combate ao desemprego, à fome, à desnutrição, e demais ganhos do desenvolvimento servirão apenas para satisfazer as necessidades de quem decide na governação do país, da província, do município ou das empresas.
O período 2020-2024 deveria ser dedicado à resolução daqueles três principais desafios, como forma de criar bases sólidas para o usufruto equitativo e transparente das receitas do gás do Rovuma que devem começar a chegar exactamente em 2024.
Por Thomas Selemane