Crónica-OS EXTREMOS DA “PÁTRIA AMADA”

Crónica-OS EXTREMOS DA “PÁTRIA AMADA”

Uma minoria do povo moçambicano conhece a letra do Hino Nacional. Uma poesia artisticamente bem elaborada, com engenho melódico de manifestação de pertença, integridade e esperança de um povo que sonha com a unidade nacional.

Ora, era suposto que fosse a canção mais popular de Moçambique, cantada de cor por todos os moçambicanos. Mas vezes sem conta surpreendemo-nos com personalidades (figuras públicas), chefes de instituições e departamentos, povo simples, professores e jornalistas, que gaguejam ao tentar morder algumas palavras apagadas pelo vento em sua memória.

Já participei em vários encontros multissectoriais nos quais a vergonha foi visível. A letra e a música do Hino Nacional são estabelecidas por lei, aprovadas nos termos do n.º 1 do artigo 295 da Constituição. Se calhar é necessário partilhar aqui, ao menos, a letra do Hino Nacional:

  1. Na memória de África e do Mundo; Pátria bela dos que ousaram lutar; Moçambique, o teu nome é liberdade; O Sol de Junho para sempre brilhará.

Coro: Moçambique nossa terra gloriosa; Pedra a pedra construindo um novo dia; Milhões de braços, uma só força; Oh pátria amada, vamos vencer.

  1. Povo unido do Rovuma ao Maputo; Colhe os frutos do combate pela paz; Cresce o sonho ondulando na bandeira; E vai lavrando na certeza do amanhã.
  2. Flores brotando do chão do teu suor; Pelos montes, pelos rios, pelo mar; Nó juramos por ti, oh Moçambique; Nenhum tirano nos irá escravizar.

Como se depreende desse Hino, Moçambique é uma terra livre, resultado da luta de libertação nacional contra o colonialismo português. A memória do povo conserva a alegria do dia da independência nacional a 25 de Junho de 1975. Hipoteticamente o povo está unido do Rovuma ao Maputo colhendo os frutos do combate pela Paz, pois “nenhum tirano nos irá escravizar”.

Ora, a experiência de cada dia mostra que o sonho pela liberdade está ainda minado por lutas fratricidas que nunca acabam. Luta-se pelo poder; luta-se pelas riquezas; luta-se por comida; luta-se por hegemonia política; luta-se por recursos minerais e madeira; luta-se sem fim. Como consequência, somos um povo que caminha sem rumo, inseguros e de olhos vermelhos.

A assimetria socioeconómica é grande. Moçambique conhece, desde sempre, um povo com uma maioria miserável e uma minoria de elite cada vez mais rica. Aumenta com as guerras o número dos empobrecidos, dos necessitados, dos estrangeiros que vivem na sua própria terra. Aumenta o número daqueles que são forçados a deixar as suas terras, partir sem rumo certo com bagagens na cabeça procurando asilo em lugares supostamente mais acolhedores e seguros.

Aqui funciona a selecção natural. Mesmo para o acesso a riqueza, a escolaridade de qualidade, para ter um apelido como antigo combatente, para ter liberdade de compra e venda de recursos naturais do país, para viver com dignidade, em tudo funciona a selecção natural. Os extremos são visíveis e não precisa usar lupa para microscopiar.

Até os problemas sociais estão geograficamente divididos no país. Parece que a falta de unidade do povo consubstancia-se, igualmente, nos seus problemas, preocupações e necessidades. A metrópole e capital do país concentra amaior parte do capital financeiro. Parece que todos os financiamentos que chegam à nossa terra devem olhar primeiro e por último em Maputo e suas periferias na zona Sul. A zona Centro é o epicentro de ciclones, inundações, tempestades que se acrescem com o problema de Nyonguismo. A zona norte é a menina dos olhos das multinacionais, os megaprojectos e exploradores insaciáveis. Aí nasce o famoso terrorismo que deslocou milhares de pessoas de Cabo Delgado para províncias circunvizinhas. O Alshababismo é uma mancha negra que revela que a nossa segurança nacional está ameaçada e ainda não estamos em altura de nos gloriar que “nenhum tirano nos irá escravizar”.

Sim! Nós somos escravos de estrangeiros e também escravos de nossos irmãos. Matamo-nos mutuamente em nome das riquezas; exploramo-nos em busca da comida.

Esta música é amarga e não alegra ninguém para dançar. O mais agravante ainda, a Covid-19 veio reforçar a nossa falta de liberdade. Para além dos mortos por guerra, por malária, por sida, o nosso coração vive ameaçado pelo inimigo invisível, o Coronavírus. Até quando?

“Oh pátria amada, vamos vencer”! Esta declaração de esperança coloca-nos no horizonte da batalha de quem se convence que a vitória é sua.

Pela unidade nacional, do Rovuma ao Maputo, precisamos de sair da teoria para a prática. A experiência mostra que muitos trabalhadores, incluindo serventes de obras ou grandes projectos que pululam no centro e norte do país são “importados” de Maputo ou zona sul. A população local interroga-se: “os nossos filhos não têm capacidades de trabalhar com as empresas ou projectos lucrativos?”.Todos nós somos moçambicanos e merecemos tratamento e oportunidades iguais.

Devemo-nos engajar na luta contra o divisionismo que gera regionalismo porque, vezes sem conta, julga-se que o desenvolvimento socioeconómico é regional. Se repararmos com atenção até os partidos políticos são regionalistas e étnicos. Como resultado, os conflitos não acabam e a opinião alheia é algo para combater. Aliás, em vários sectores de trabalho, ser da posição ou da oposição gera mau-olhar e juízos indiferentes. Tanto é que só pode chefiar um sector ou departamento aquele que é “nosso” (Risos). Quem é que não é nosso nesta Pátria Amada?

Mais vale empregar um incompetente (por ser nosso) que um competente que não é nosso? Isso não deixa de revelar efeitos indesejados à medida que notamos trabalho que deixa a desejar. Pois, quando trabalhamos por confiança política e não por capacidades adequadas o resultado são os maus préstimos para o povo.

Se queremos, Pedra a pedra construir um novo dia, devemos investir na profissionalização dos nossos gestores. Já se viu em várias ocasiões pessoas bocejando ou dormindo em plena sessão da Assembleia da República. Que proveito se poderá esperar de um dorminhoco que diz ser representante do povo? Quem votou um “non sui compos?

Veja-se o esforço do camponês. Todo o ano cultivando a terra, comendo o suor do seu corpo e o resultado é quase invisível. Pior ainda neste ano. Em muitas regiões do país as culturas ou foram devastadas pelas inundações ou ainda pela seca.

Os extremos são grandes. O índice da fome é elevado. Pessoas há que estão a morrer de fome. Enquanto outras pessoas deitam comida na lixeira ou alimentam cães. A vida é dura mesmo. Quem nos salvará disto? De onde virá o auxílio? Para quem se poderá recorrer? Como?

Kant de Voronha, in Anatomia dos factos

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