A partidarização do Estado trava o desenvolvimento de Moçambique
Por Dr. Tomás Selemane
Por partidarização do Estado entendo a subordinação dos desígnios de interesse público (do Estado) às normas e interesses de um determinado partido político, geralmente o partido que gere o Estado (que governa). Essa partidarização acontece em dois principais níveis do Estado: primeiro, o nível central que inclui os ministérios e órgãos de soberania, nomeadamente o Presidente da República (PR), a Assembleia da República (AR), o Governo, os Tribunais e o Conselho Constitucional – conforme define o art 137 da nossa Constituição da República. O segundo nível é o local ou autárquico (os municípios).
Este texto é o quinto da série “Os maiores travões do desenvolvimento de Moçambique” que venho abordando nesta rubrica. Depois de ter-me debruçado sobre a (i) intolerância política, (ii) a ausência da reconciliação nacional, (iii) a frágil unidade nacional e (iv) a fragmentação da governação, desta vez proponho-me a analisar outro grande impedimento do nosso bem-estar colectivo: a partidarização do Estado – nos termos em que defini acima.
O meu argumento é este: a priorização dos interesses partidários (de um grupo de pessoas – partido quer dizer isso mesmo), no nosso país, em detrimento dos interesses de toda a colectividade moçambicana (o Estado) impede a concretização dos anseios de combate à pobreza, da criação do emprego, da erradicação da fome, da melhoria dos serviços de saúde e educação e dos demais males que nos afligem. Todas as iniciativas de promoção do desenvolvimento do nosso país não têm produzido os resultados desejáveis porque a sua implementação acontece dentro dum contexto de partidarização do Estado, de exclusão política e social, de separação dos moçambicanos entre “nós do nosso partido” e “aqueles outros”.
A meu ver, a partidarização do Estado trava o nosso desenvolvimento de duas formas: por um lado, ela impede que iniciativas de governação que se pretendem de melhoria do bem-estar da população no geral acabem não somente sendo implementadas como iniciativas do partido que governa, mas sobretudo geridas como se fossem iniciativas privadas desse partido, beneficiando em primeiro, segundo, terceiro, quarto lugares, ou mais, apenas às pessoas do partido que governa, e só depois, muito depois, se procura chegar aos demais. Mas esse depois acaba sendo tão tardio que se transforma num nunca, resultando mesmo no adiamento do bem-estar dos tais demais.
Por outro lado, da mesma forma que os partidos que governam o Estado ou os diferentes municípios – Frelimo, Renamo e MDM, buscam para si todos os benefícios da sua acção governativa, e porque a governação está sempre sujeita a falhas e fracassos, torna-se muito difícil, em alguns casos mesmo impossível, haver uma mobilização colectiva para a paciência, a tolerância e a compreensão das falhas e fracassos dessa governação.
A partidarização do Estado é fundamentalmente, na teoria e na prática, contra o funcionamento normal duma sociedade de democracia multipartidária como a moçambicana. Vejamos alguns dos exemplos mais significativos.
No nosso país, a partidarização do Estado começa ao mais alto nível de soberania: o Presidente da República. Não me refiro às pessoas nem anteriores nem actual que ocupam o cargo, refiro-me à instituição constitucional “Presidente da República”, nos termos do artigo 145 da nossa Constituição da República, que define o órgão Presidente da República como sendo “Chefe do Estado, símbolo da unidade nacional, representante da nação dentro e fora do país, e quem zela pelo funcionamento correcto dos órgãos do Estado.”
Depois dessas competências, a nossa Constituição da República (art. 148) define as incompatibilidades entre o exercício do cargo de Presidente da República com o exercício de quaisquer outros cargos públicos ou privados, não previstos na Constituição.
Acontece, porém, que historicamente os Presidentes da República de Moçambique têm sido propostos e eleitos por via dum partido político – a Frelimo, e têm sido ao mesmo tempo presidentes da Frelimo. Ora, ser presidente dum partido político é uma função privada, porque os partidos políticos – mesmo não parecendo – são organizações de direito privado. Ou seja, uma vez eleita presidente, a pessoa que seja simultaneamente presidente dum partido político deveria renunciar a essa função partidária.
Eu sei que este é um cenário que muitos leitores olham com incredulidade, simplesmente porque nunca viram neste país um Presidente da República que não fosse ao mesmo tempo presidente do partido Frelimo. Pior ainda, com a excepção das primeiras eleições presidenciais realizadas em 1994, o país nunca viu candidatos presidenciais que não fossem propostos pelos partidos políticos. Ora, o problema não é o facto de os candidatos presidenciais serem provenientes dum partido político. Mas sim o facto de que, uma vez eleito presidente, o candidato vive em contínua violação constitucional ao se manter presidente do seu partido, acabando dessa forma por ser o primeiro e maior expoente da partidarização do Estado, contra o estabelecido na Constituição da República, conforme demonstrei acima.
Para mim, é mais preocupante ainda notar que nenhum partido político no nosso país pretende acabar com essa partidarização do cargo de Presidente da República. Em linha com a Frelimo, o que a Renamo e o MDM têm proposto aos moçambicanos é a eleição dos seus respectivos presidentes partidários para exercerem o cargo de Presidente da República (PR), sem nenhuma promessa muito menos garantia de que uma vez eleito PR o presidente da Renamo ou do MDM deixará de dirigir o seu partido. Ou seja, a Renamo e o MDM pretendem perpetuar o mesmo erro da Frelimo.
Outro exemplo de partidarização do Estado consiste na forma de preenchimento dos demais cargos do Estado (a nível central ou municipal). Geralmente, têm sido nomeadas para cargos de direcção somente pessoas que militam no partido que governa o Estado, por exemplo, a nível central, somente membros do partido Frelimo são considerados capazes de serem ministros ou vice-ministros. No município de Maputo, apenas militantes da Frelimo são chamados a ocupar os cargos de vereadores e directores. Na Beira, somente membros do MDM são vistos como tendo capacidade para serem vereadores e directores do município. Em Nampula, Nacala, Quelimane e noutros municípios onde a Renamo governa, somente os seus membros são escolhidos para a equipa governativa.
Como se pode ver, esta partidarização do Estado a vários níveis, e praticada por todos os partidos que governam os diferentes níveis do nosso Estado é contra os princípios da democracia multipartidária, impede o desenvolvimento inclusivo, porque não considera os moçambicanos na sua diversidade política como sendo Todos Irmãos, para usar os termos do Papa Francisco, na sua Encíclica Fratelli Tutti.
Nós os católicos, e todas as pessoas de boa vontade, devemos rejeitar essa partidarização do Estado, não nos termos em que os membros dos partidos políticos o fazem (criticam-se mutuamente, mas todos eles fazem o mesmo como demonstrei acima), mas sim à luz da Doutrina Social da Igreja e dos ensinamentos do Papa Francisco que nos apela a vivermos como sendo Todos Irmãos sem as distinções artificiais entre “nós do partido” e “os outros.” Porque com essas discriminações não será possível desenvolvermos o país de forma harmoniosa e inclusiva. É por isso que a partidarização do Estado é um dos travões do nosso desenvolvimento.