Falhas do nosso Estado ou Estado falhado?
Por Dr. Deolindo Paúa
Viver juntos, de forma organizada é o que nos caracteriza como humanos. Os homens são os únicos seres vivos capazes de não apenas viver com os outros, mas também juntos, seguindo uma ordem por si estabelecida. Criar uma hierarquia para manter a nossa harmonia e nossa segurança é a mais básica das nossas necessidades como humanos. Diz-se que só a vida colectiva dos homens é que pressupõe uma ordem consciente e um plano eficaz de autoprotecção. Os outros animais vivem uns com os outros pelo instinto natural, só porque são da mesma espécie e não porque alguma recomendação lhes obrigue a tal.
A crise das relações humanas
Mas infelizmente, nós, pessoas, nos últimos anos, o nosso “viver juntos” e nossa pretensão de viver seguros nesse viver juntos estão em constantes crises. Parece estar a ser insustentável. Os homens perdem a cada dia a sua sensibilidade sobre a importância de viver juntos como pressuposto de complemento mútuo. Esquecem a cada momento que sem os outros a vida individual é insustentável. Ao invés de viver juntos, hoje, uns vivem à custa dos outros.
É isto que observamos nas sociedades de todo o mundo: uns a sobreviver à custa do sacrifício dos outros. Com efeito, por exemplo, empresários enriquecem por desgraçar os pobres por causa das suas políticas comerciais; mulheres são usadas como objecto de prazer dos homens; crianças são mercadoria para riqueza fácil dos preguiçosos; quem devia proteger a integridade da maioria, os políticos, se esforçam para melhorar a cada dia suas estratégias para viver dos seus súbditos. Já não se vive mais juntos, mas vive-se dos outros. Não existe mais a preocupação da sobrevivência humana como género, existe sim uma preocupação de sobrevivência individual. Para isto todos lutam, mesmo que seja por via do prejuízo da vida dos outros e para colocar em causa todos os valores da sociabilidade.
Causas da fundação do Estado
Noutros contextos, dizia-se que estes comportamentos que perigavam a sobrevivência uns dos outros, eram a causa da fundação do Estado. O Estado, com toda a sua autoridade, era a alternativa para conformar todas as vontades e todos os comportamentos ao respeito da dignidade dos outros. Onde houvesse Estado, devia haver também segurança, justiça e liberdade das pessoas.
Estes pressupostos preenchiam os direitos humanos, os quais qualquer Estado tinha o direito de proteger na pessoa dos cidadãos. É por isso que o artigo 11 da nossa Constituição estabelece os seus objectivos fundamentais assentes em vários pressupostos, alguns dos quais são a garantia da segurança, a justiça social e a liberdade dos cidadãos, justificados pela obrigação do Estado em garantir e defender os direitos humanos.
Objectivos fundamentais do Estado
Há algum tempo, alguns analistas moçambicanos constatam que estes três pressupostos (segurança, justiça e liberdade), plasmados como objectivos fundamentais na nossa Constituição não estão a ser preenchidos no nosso Moçambique. Chegam, por isso, a dizer que o nosso Estado é falhado.
É difícil e discutível dizer que realmente o nosso Estado moçambicano é ou não é falhado. Mas uma coisa é certa: não temos, nem nos esforçamos em solidificar as verdadeiras bases do que nos uniu para vivermos juntos como membros do mesmo país, como moçambicanos.
A nossa segurança, a nossa justiça e a nossa liberdade são cada vez mais colocados em risco, até por vezes de forma propositada, ora por outras pessoas, ora pelas próprias autoridades que se despem das suas responsabilidades.
Insegurança generalizada
Em termos de segurança, a cada dia os cidadãos sentem-se mais desprotegidos como se não houvesse uma autoridade com missão de proteger e garantir a segurança de todos. Em Moçambique a insegurança está instalada. Não há lugar, nem cidade, nem campo, onde o cidadão se sinta seguro e tenha a sua vida a fluir de forma tranquila, sem a ameaça da sua integridade física ou económica. No campo, instalam-se guerras.
Por meio destas guerras mata-se e viola-se os mais básicos direitos humanos da forma mais vil. Nas cidades, instalam-se raptos e assassinatos; na periferia das cidades instala-se o crime organizado. De dia ou de noite, nas cidades, grupos de criminosos desfilam sua classe, matando, ferindo, violando e expropriando bens de forma tranquila, sem o mínimo de medo de repressão de alguma autoridade, porque a autoridade está quase sempre ausente.
Em termos de justiça, nunca tinha-se assistido em alguma sociedade tamanha desigualdade social, económica e política como na nossa sociedade moçambicana. Enquanto os políticos esbanjam recursos públicos comprando para si bens que não precisam, fazendo viagens desnecessárias, o povo, nas cidades e no campo morre de pobreza, de desnutrição, de fome.
Desigualdade social
Num país como nosso, onde líderes vivem uma vida de reis, não faz sentido que haja comunidades que se alimentam de capim, a menos que a sociedade tenha sido abolida e estejamos vivendo numa selva. Pior que a desigualdade e a corrupção que, apesar de insistir em desgraçar os pobres e enriquecer pelo roubo os mais ricos, torna-se norma de vida.
A distribuição da riqueza que devia ser igual para todos obedece, agora, a critérios partidários e regionais. Só membros de um grupo partidário dominante ou só indivíduos provenientes de um certo extremo do país conseguem alcançar seus objectivos económicos com facilidade. Não é ao acaso que vemos que onde domina a Renamo, só os seus membros ascendem a cargos de chefia, onde reina a Frelimo, os empregos são distribuídos pela regra de exibição do cartão, assim sucessivamente. Outrossim, a venda do emprego e o privilégio das pessoas mais chegadas tornou-se norma no acesso a meios de sobrevivência, por isso, empregos com os melhores salários são reservados aos filhos dos chefes.
Em relação a liberdade, nunca o nosso país teve uma Constituição e um conjunto de leis favoráveis à liberdade dos cidadãos. Mas ao mesmo tempo, nunca estivemos sem liberdade como agora. A incapacidade dos líderes em garantir a segurança e a igualdade exige um mecanismo de defesa.
Esse mecanismo de defesa tem sido a ameaça à liberdade para que os cidadãos estejam desgostosos mas não perguntem, sofram e não reclamem, estejam inseguros e não gritem por socorro. Perdemos a liberdade de tal modo que temos medo de reclamar a própria condição deplorável da vida que vivemos. Estamos livres só na condição de falar o que convém a quem dirige. Ameaça-se a liberdade para que no lugar de cidadãos tenhamos súbditos, no lugar de pessoas activas tenhamos cobardes e no lugar de gente exigente tenhamos pessoas apáticas e conformadas com a miséria em que vive.
Se um Estado não cumpre a missão para a qual foi constituído, não alcança os objectivos que definiu como sendo fundamentais, então é mesmo falhado. Será o caso de Moçambique ou nossas constatações sobre a realidade do dia-a-dia é puro fanatismo que cumpre uma agenda externa?