Como está o nosso projecto de Unidade Nacional?

Como está o nosso projecto de Unidade Nacional?

Celebramos em Fevereiro o dia dos heróis moçambicanos. Os heróis moçambicanos lembram-nos sobretudo a guerra de libertação Nacional na qual jovens corajosos e determinados, auxiliados pelo povo, decidiram libertar o país e fundar um Estado único e unido, chamado Moçambique. Obrigado aos nossos heróis, aqueles que de facto lutaram por Moçambique, os heróis verdadeiros! Ora, quando se fala deste assunto de unidade Nacional em Moçambique, é sempre bom lembrar que o que nos levou a guerra contra o colonialismo português foi o sentimento de injustiça, de opressão. Quer dizer que ao lutar, sonhávamos em fundar um Estado de justiça e de liberdade, um Estado completamente oposto ao colonial. Conseguimos? Esta é uma pergunta que nos remete a um outro assunto. O problema neste texto é sobre a forma como lidamos com as nossas diferenças étnicas e regionais desde a independência.

Uma das medidas que foi levada a cabo para edificar o Estado Moçambicano logo depois da independência foi o esforço para a criação e consolidação da unidade nacional. A Frelimo (o movimento popular de libertação e não o partido) entedia, no contexto, que para se formar uma nação era necessário eliminar os diversos grupos étnicos que aparentemente criavam divisões entre o povo. Nessa altura, no esforço de construir a unidade nacional, exageros e erros foram cometidos, etnias foram combatidas e perseguições encetadas. Mas à medida que esse esforço era empreendido, as críticas sobre a unidade nacional iam crescendo. Estas críticas eram movidas ora pela rivalidade tradicional entre certas etnias, ora pela compreensão (numas vezes formal, noutras informal) de que as pessoas de uma determinada região do país tinham mais privilégios, mais oportunidades e mais acesso a cargos públicos do que as pessoas de outras regiões. Há quem diga que a guerra dos dezasseis anos foi movida, em parte, por este sentimento de exclusão de uns em relação aos outros. Será verdade?

Independente das causas dos nossos conflitos, há uma coisa que se torna certa a cada dia: perto de cinquenta anos de independência depois, não alcançados uma unidade nacional segura. Feridas e fantasmas do passado continuam atormentando nosso projecto de unidade nacional. Ainda não conseguimos conciliar ou aceitar nossas diferenças e viver juntos como pessoas do mesmo país. Infelizmente, ainda existe na mente e no modo de viver das pessoas, um sentimento de pertença a esta ou a aquela região mais do que a um único Moçambique. Pertencer a uma cultura não é mau. Aliás, devia ser estimulado se isso concorrer para construir as nossas diferenças, acrescentar qualidade a nossa democracia e levar a um pensamento nacionalista mais exigente, mais humano e mais liberal. O problema é que até hoje essas pertenças continuam sendo, quase oficialmente, causa de exclusão social, de indiferenças em relação aos outros e sobretudo e mais grave, continuam sendo objecto de nossa recusa da unidade nacional.

Quem são os tribalistas de hoje?

No passado, Samora Machel se esforçou, pelo menos nos seus discursos, a combater o pensamento e atitudes tribalistas. Nessa altura os tribalistas eram pessoas comuns que entendiam que pertencer a uma tribo era mais vantajoso do que pertencer a outra tribo. Esse tribalismo foi sustentado pelo regionalismo. Infelizmente, tivemos formas de governação que davam valor a estas divisões étnicas e justificavam os preconceitos de superioridade de pessoas de uma região do país sobre as outras. As mesmas pessoas, para disfarçar suas práticas regionalistas, criminalizavam qualquer discurso sobre tribalismo. Era proibido assumir publicamente a pertença a uma região. Entretanto, mais tarde percebeu-se que a forma mais eficaz de construir um nacionalismo não era o combate as tribos, mas era a liberalização e estímulo de pertenças tribais, desde que contribuíssem para a consciência da moçambicanidade.

Hoje, o nosso projecto de unidade Nacional ainda é um fracasso. Paradoxalmente, com população mais instruída que no passado, o tribalismo devia ter sido superado se não fossem pessoas instruídas e interesseiras o suficiente para distorcer o entendimento sobre a pertença tribal. Infelizmente, hoje, mais grave do que no passado, o tribalismo está visível nas instituições públicas, está no modo de governar que não raras vezes privilegia a quem assume o poder. E não é novidade nos nossos dias, quem detém um cargo de chefia em alguma instituição faz-se rodear de pessoas de sua região de proveniência. A razão invocada para tal atitude é sempre a confiança. Mas não podemos negar que nessa prática há uma dose de tribalismo, um pensamento de que as melhores pessoas para ocupar os melhores cargos são as conhecidas e não necessariamente as competentes. Aqueles nossos heróis de verdade, que empunharam armas com objectivo de construir uma nação devem estar decepcionados com o caminho que trilhamos, com o divisionismo que nos esforçamos em manter para garantir interesses fúteis de nossos grupos.

Descentralização e municipalização: ameaça a unidade Nacional?

Na aurora da democracia, quando o assunto de regionalismo e tribalismo começou a ser discutido livremente, sem censuras nem preconceitos, a descentralização ganhou outro significado. Hoje, governar pequenos espaços territoriais é entendido como aproximação do poder ao povo. Com a descentralização que teve início na municipalização, pequenas vilas tornaram-se uma espécie de pequeno Estado. As pessoas ganharam a prerrogativa de escolher localmente seus dirigentes e lhes exigir, na medida necessária, resultados de seus problemas. Isto é bom. Só que desde que cresceu a ideia de celebração de datas municipais a atenção dos cidadãos virou mais para o seu município do que para o país inteiro. Podemos nos fazer perguntas básicas como: quais são as eleições mais participadas pelos cidadãos, as gerais ou municipais? Os cidadãos identificam-se mais pelos seus municípios ou pelo seu país? Num determinado município, o presidente da República tem mais legitimidade e aceitação do que o presidente desse município? Entre o 25 de Junho e a data comemorativa do Município, o que mais os munícipes levam em consideração? Infelizmente é assustador notar que as pessoas viram-se mais para assuntos do seu território local do que para assuntos nacionais. As datas municipais são mais celebradas do que o dia da independência. Os comícios municipais são mais participados do que os presidenciais.

A descentralização não é má. Mas o modelo de gestão nacional apegado aos pecados do passado leva as pessoas a se confinarem ao local. Infelizmente o regionalismo e o tribalismo continuam a assombrar uma governação que devia ser na base da igualdade entre os moçambicanos. Pelo regionalismo e tribalismo, os cidadãos podem não estar a sentir que são devidamente representados e seus interesses são devidamente levados a sério pelo poder central. Enquanto isso acontece, o nacionalismo corrompe-se e com ele o patriotismo entra em crise. Cada tribo fica a espera da sua vez “para comer”. O poder central começa, aparentemente, a ser assumido para realizar interesses de grupos étnicos e não do país inteiro. Mesmo dentro dos partidos políticos, as crises e os conflitos têm uma justificativa tribal.

O mais triste é que estas divisões que comprometem o nosso projecto nacional são mantidas e solidificadas deliberadamente para interesses obscuros, por pessoas devidamente instruídas e que deviam ver Moçambique como um todo e não como objecto de realização de intenções étnicas ou regionais. Se não soubermos conviver com as nossas diferenças tribais, que já devíamos ter a convier naturalmente com elas, seremos incapazes de solidificar a nossa intenção de pertencermos, na intenção e na prática, na lei e na vida a um único país. Unidade Nacional não significa que todos tenhamos que pensar de forma igual; não significa igualmente que todos temos de ser da mesma cultura e da mesma convicção. Significa, sim, que todos, uma vez moçambicanos, apesar das nossas diferenças naturais, precisamos de encarar esse projecto nacional com seriedade, para o nosso bem.

Deolindo Paúa

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