As greves do Estado contra o povo
Por Thomas Selemane
Tornou-se comum nos últimos tempos ouvirmos que sectores do Estado moçambicano estão ou vão entrar em greve. Na prática, quando professores, médicos, profissionais da saúde, juízes ou outros servidores públicos entram em greve é o Estado que entra em greve contra o povo moçambicano a quem se deixa de servir. Servidores públicos de diferentes sectores reclamam por melhores condições de trabalho como meios de trabalho, equipamentos para uso na sua actividade, pagamento de horas extras e diversos subsídios, até a melhoria dos salários. O Governo – gestor do Estado – tem respondido que não tem possibilidade de satisfazer as reclamações daqueles servidores públicos. Porque é que isso acontece assim?
Neste texto procuro analisar os contornos político-económicos que têm produzido e reproduzido as greves na função pública.
Como ponto de partida, olhemos para o seguinte paradoxo: temos ouvido declarações de organismos internacionais, particularmente do Fundo Monetário Internacional (FMI) a dizerem que a função pública moçambicana é demasiado grande, que os funcionários públicos são muitos, que a folha salarial do Estado é muito pesada e que deve ser reduzida. Ouvimos isso e vemos na prática falta de médicos e de demais profissionais da saúde, falta de professores e demais servidores públicos.
A que se deve este paradoxo? Ele deve-se essencialmente à estrutura da nossa função pública talhada pelo percurso histórico do país. Vou explicar. Primeiro, a composição, estrutura e funcionalismo da na nossa função pública vem dos tempos em que Moçambique se supunha a viver o marxismo-leninismo, com a sua economia centralmente planificada. As pessoas eram colocadas em locais de trabalho conforme o entendimento que os chefes tinham sobre essa pessoa e sobre essa função. Nada era baseado numa avaliação de adequabilidade. O caso mais marcante foi o do chamado “8 de Março”, quando o governo do Presidente Samora entendeu que todos aqueles jovens – homens e mulheres de todo o país – que tinham concluído o ensino secundário estavam aptos a servirem o país em qualquer função onde fossem colocados. O resultado é conhecido: muita gente foi desempenhar funções para as quais não tinha nem preparação, nem gosto nem vontade.
Segundo, naquele contexto de afectações de funcionários pelos chefes que se supunha saberem quais eram as necessidades do Estado e as competências das pessoas, o país acumulou muita gente ociosa na função pública. Quando nos finais dos anos 1980, o Governo de Moçambique decidiu abandonar o chamado socialismo e abraçar o capitalisno, foram feitas várias tentativas de redefinir o tamanho da função pública. As empresas públicas também foram abrangidas por essa reforma, sendo os Portos e Caminhos de Ferro (CFM) a empresa que teve o maior e mais badalado programa de reforma de mão-de-obra. Mas tal não foi suficiente para ajustar a quantidade e qualidade dos funcionários públicos à real dimensão do país. A cada ano que passava, admitiam-se mais funcionários, a folha salarial crescia, sem que para tal a qualidade dos serviços públicos oferecidos aos moçambicanos melhorasse.
Terceiro, no começo da década de 2000, o Estado moçambicano adoptou a medida de pagar os salários da função pública de acordo com o certificado de habilitações literárias que cada funcionário apresentasse. Foi ali que milhares de funcionários públicos foram-se matriculando em cursos universitários, sem atender à sua área de trabalho, muito menos às necessidades do país. Em poucos anos, a administração pública estava repleta de licenciados em áreas que pouco ou nada tinham que ver com a função que a pessoa desempenhava. E o Estado foi obrigado a remunerar a essa gente os salários pagos aos “doutores.” Mais uns anos, tinhamos poucos técnicos e muitos “doutores” que em nada acrescentaram no desempenho da administração pública.
Quarto, até que em 2016, como resultado da crise financeira do Estado provocada pelo corte do apoio orçamental dos parceiros de cooperação, zangados com a descoberta das dívidas ocultas, o Estado decidiu, então, congelar as promoções, progressões e novos recrutamentos. Por cada três funcionários que saíssem num ano, incluindo devido a morte ou reforma, o Estado admite apenas um. Mas com excepções: na saúde, na educação, nos sectores de defesa e segurança e na agricultura (somente para extensionistas). Resultado: aos poucos a função pública começou a ressentir-se da falta de pessoal em várias áreas. Enquanto na polícia, por exemplo, se faziam recrutamentos e treinamentos massivos, na educação e na saúde, apesar daquela excepção, formam-se e graduam-se jovens que depois não são absorvidos. Porquê? Simples: o Estado não tem cabimentação orçamental para suportar as novas entradas de funcionários. Muito menos para melhorar as condições daqueles que já estão integrados no trabalho.
Quinto, por volta de 2020-2021, eis que o governo brinda os funcionários públicos com a famosa tabela salarial única (TSU). Como instrumento de reforma do sector público, com a TSU pretendia-se controlar o crescimento da função pública através (i) da harmonização dos salários e benefícios; (ii) redução/eliminação dos vários subsídios e assim reduzir o volume da folha salarial; (iii) reduzir o número de funcionários em idade avançada – foi assim instituída a idade de reforma dos 60 anos, sem nenhum estudo. Resultado: professores universitários, médicos e outros agentes superiores do Estado estão a ser desligados da função pública, deixando os seus lugares vagos. Desde que a TSU começou a ser implementada, não há evidência da sua eficácia.
Sexto e último, percorridos aqueles cinco passos da trajectória da função pública moçambicana, o Governo não sabe o que fazer nem como fazer para conter as elevadas despesas e satisfazer as demandas dos que reclamam e entram em greve. A solução é tecnicamente simples mas politicamente complexa: eliminar os vários cargos de chefia e regalias. Poderá o próximo Presidente da República tomar essa decisão? Veremos!