V SEMANA BÍBLICA: 2º Dia – Autoria, composição, teologia e proposta de uma leitura contextualizada
2º Dia: Segunda-feira, 16 de setembro de 2024
Pe. Salvador Bila
O evangelho de São João ou segundo São João pode se designar o evangelho da maturidade cristã. É muito mais discursivo e complexo do que os evangelhos sinópticos e supõe uma base sólida de experiência cristã para a sua compreensão.
A presente exposição, de carácter catequético e pastoral e não académico, visa introduzir aos elementos gerais para a leitura, compreensão e vivência do Evangelho segundo São João para o leitor-crente de hoje. Para o alcance desse objectivo, esta apresentação se organiza em duas partes distintas e complementares. Na primeira parte, que se pode intitular parte histórica, serão apresentados os elementos objectivos que caracterizam o livro, a saber, dados sobre o autor, a estrutura o organização do livro e os seus principais ensinamentos teológicos. Na segunda parte, de carácter hermenêutico, procura-se actualizar o texto para a realidade dos tempos presentes no nosso contexto africano e moçambicano (afro-moçambicano). Nessa parte hermenêutica, será apresentada uma proposta de leitura (alguns exemplos) do Evangelho de João para a realidade actual afro-moçambicana.
I. Elementos históricos sobre o evangelho de São João
1. Autor, data da redacção e destinatários
A maioria dos livros da Bíblia não apresenta os seus autores. O Evangelho de João é um desses livros cujo autor é anónimo. O autor do escrito não consta no livro. As primeiras comunidades cristãs atribuíram este escrito ao Apóstolo São João, denominado Evangelista e também conhecido como ―discípulo amado‖.
O nome ―João‖ significa ―Deus é graça‖. João era um dos Doze Apóstolos, filho de Zebedeu e irmão de Tiago, o Maior (Mt 10,2; Mc 3,17; Lc 6,14; Act 1,13). A tradição das comunidades primitivas identificou João como o ―o discípulo amado‖, uma das personagens ―misteriosas‖ mencionadas no evangelho de João, mas que não se sabe com exactidão de quem se trata (Jo 13,23; 21,20.24).
As características literárias deste escrito permitem que seja classificado dentro de um género literário que se chama evangelho. Os evangelhos como um estilo específico de literatura contam, a partir de quatro diversas perspectivas, a vida, as obras e a páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O evangelho de João é o quarto livro no cânone (lista dos livros inspirados) do Novo Testamento. É igualmente o último dos quatro evangelhos seja do ponto de vista cronológico, ou seja, segundo a ordem temporal da redacção dos evangelhos, seja do ponto de vista canónico, quer dizer, segundo a ordem de apresentação dos evangelhos na Bíblia. Os três primeiros evangelhos (Mateus, Marcos e Lucas) são chamados sinópticos devido às suas semelhanças na apresentação da sua mensagem. Eles podem ser apresentados em três colunas em que se podem ver as suas semelhanças e diferenças. O evangelho de João, embora tenha também semelhanças com os outros três evangelhos, apresenta significativas diferenças tanto em termos de apresentação da sua mensagem (diferenças de forma) como em termos da própria mensagem (diferenças de conteúdo).
Comparativamente aos evangelhos sinópticos, o evangelho de João apresenta uma mensagem teológica mais complexa e elaborada. Enquanto os três primeiros evangelhos apresentam muitas narrações, o evangelho de João agrega às narrações, importantes discursos teológicos proferidos por Jesus sobre diversos temas teólogicos: pão, a luz, bom pastor, glorificação, o serviço fraterno.
Devido aos diversos discursos proferidos por Jesus no evangelho de João que se apresentam como uma reflexão teológica de alto teor, como por exemplo o prólogo (cf. Jo 1,1-18), desde o século III, baseando-se em Ez 1,10, o evangelho de João passou a ser simbolizado pela águia (Mateus é simbolizado por um anjo, Marcos pelo leão e Lucas pelo touro).
Os Padres da Igreja (os sucessores dos apóstolos até ao século IV depois de Cristo), de modo particular Santo Irineu, que viveu durante o século II depois de Cristo, confirmam a atribuição do evangelho a São João que já circulava informalmente pelas comunidades cristãs. Mesmo não se conhecendo o autor material, não há a mínima dúvida de que o escrito é inspirado e visa suscitar a fé em Jesus, o Cristo, para a obtenção da vida eterna (cf. Jo 20,30-31).
O livro também não apresenta nem a data da sua escritura nem a quem se destina. Estudos históricos que comparam o conteúdo do livro e a situação histórica da Palestina, situam a redação do livro no fim do primeiro e início do segundo séculos depois de Cristo. Os destinatários do livro são judeus convertidos ao cristianismo e também cristãos oriundos de outros quadrantes como Samaria (cf. Jo 4). O evangelho procura também manter a unidade dos discípulos de Jesus (cf. Jo 15).
A frequente ausência de elementos circunstanciais dos livros da Bíblia, também constatáveil no evangelho de João, como o autor, os destinatários e a data de redacção podem ser interpretados como a expressão da convicção das comunidades cristãs de que o essencial é a mensagem do livro e não as circunstâncias do seu nascimento. Por outras palavras, a nossa atenção deve concentrar-se principalmente no texto enquanto mediação da comunicação da Palavra de Deus. O texto, sendo Palavra de Deus, é superior ao seu autor humano, e tem autonomia em relação a ele. A ausência de uma data e de um autor específicos quer significar que a validade e a importância do livro transcendem todas as épocas históricas e destina-se a todos aqueles que procuram a vida em abundância (cf. Jo 10,10) e a encontram no Senhor Jesus (cf. Jo 20, 30-31).
2. Organização e mensagem do evangelho de João
Como acontece também com tantos outros materiais da Bíblia, os manuscritos originais do evangelho de São João apresentam-se com um texto contínuo sem títulos. Para uma melhor compreensão, os estudiosos da Bíblia costumam organizar o texto em unidades de mensagem (comunicação) e atribuir títulos a essas mesmas unidades. Essas diversas unidades podem ter diversas dimensões, como por exemplo um episódio (cf. bodas de Caná: Jo 2,1-10; o encontro de Jesus com Nicodemos, Jo 3,1-21), um capítulo ou uma secção, por exemplo o Livro dos sinais, Jo 1-12.
Há diversos esquemas propostos para a apresentação do conteúdo do evangelho. O esquema que reúne maior consenso é aquele que organiza a mensagem do livro em duas partes principais. A primeira parte se chama o livro ou a secção dos sinais e a segunda parte se chama o livro ou a secção da glória. Segue-se o esquema completo:
0. Introdução ou prólogo(princípio): Jo 1,1-18
Esta parte inicial apresenta Jesus como a Palavra eterna do Pai pela qual tudo foi criado (cf. Jo 1,3). Esta parte retoma e reinterpreta a narração da criação do mundo que se encontra em Gen 1-2. Refere-se também a momentos importantes da história da salvação como a pregação de João Baptista e a superação da lei mosaica através da graça dada por Jesus.
1. A secção ou o livro dos sinais (Jo 1-12)
Chama-se livro dos sinais porque nesta secção se concentra a maioria dos sinais divinos realizados por Jesus e que manifestam que Ele é o Messias, manifestam a sua glória e suscitam a fé dos discípulos (cf. Jo 1, 41-51; 2,11.23; 3,2). As principais partes do livro dos sinais são:
1.1. A pregação de João Baptista: Jo 1,19-34
1.2. O chamamento dos primeiros discípulos: Jo 1,35-51
1.3. As bodas de Caná: Jo 2,1-12
1.4. A purificação do templo: Jo 2, 13-25
1.5. Nicodemos: Jo 3,1–21
1.6. Jesus e João Baptista: Jo 3, 22–36
1.7. A mulher samaritana: Jo 4,1–54
1.8. A autoridade de Jesus e a lei judaica sobre o sábado: Jo 5,1–47
1.9. O Pão da vida: Jo 6,1–71
1.10. A festa dos tabernáculos e as resistências das autoridades judaicas: Jo 7,1–5
1.11. A luz do mundo: Jo 8,1-59
1.12. O cego de nascença: Jo 9,1-41
1.13. O bom pastor: Jo 10,1-42
1.14. A ressurreição de Lázaro: Jo 11,1-57
1.15. Jesus em Jerusalém: Jo 12,1-50
2. O livro da glória: Jo 13-20
Esta é a parte mais discursiva do livro. Jesus fala da sua iminente morte não como fim trágico e indesejado, mas como projecto do Pai para a glorificação do Filho. É parte da glorificação do Filho a instrução dos discípulos (particularmente os doze apóstolos) para que, depois da morte do Jesus e sob guia do Espírito Santo vivam no amor e no serviço fraterno uns dos outros. Esta segunda parte do evangelho se organiza do seguinte modo:
2.1. Jesus lava os pés aos seus discípulos: Jo 13,1-21
2.2. O Discurso da última ceia: Jo 13, 22-16,33
2.3. A oração de Jesus: Jo 17,1-26
2.4. Narração da paixão: Jo 18,1-19,42
2.5. Ressurreição e aparações de Jesus: Jo 20,1-31
2.6. Epílogo: Jo 21,1-25
3. Características literárias
No evangelho de João discursos e narrações se alteram de modo complementar. O evangelho começa com um discurso que remete ao principío de toda a realidade antes da criação. A profundidade mística e teológica é uma das características do evangelho de João. Diferencia-se dos evangelhos sinópticos por apresentar diversos e longos discursos de Jesus, com diversas metáforas como ―nascer de novo‖, ―água‖, ―luz‖, ―pão‖, ―pastor‖, ―vinha‖, entre outras. A mensagem que o evangelho quer transmitir é tão profunda que supera todas as experiências humanas sensíveis. Para exprimir essa mensagem, o evangelho serve-se de experências humanas essenciais como o nascimento, a água, a luz, o pão, entre outras. Mas a mensagem do evangelho vai para além dessas realidades.
Outra característica do quarto evangelho é a tendência de abstrair-se das coisas materiais e sensíveis. Alguns exemplos disso são o prólogo que se coloca fora dos limites da história e das coordenadas do tempo e do espaço, remontando à eternidade; outro exemplo são as palavras de Jesus no diálogo com Nicodemos: 6Aquilo que nasce da carne é carne, e aquilo que nasce do Espírito é espírito. 7Não te admires por Eu te ter dito: ‘Vós tendes de nascer do Alto.’ 8*O vento sopra onde quer e tu ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito. (Jo 3, 6-8).
Os contrastes são outra característica presente no evangelho de João. Exemplo disso são os contrastes, luz-trevas; carne-espírito; judeu-samaritano; pastor-mercenário.
A ironia, isto é, a sugestão de uma ideia ou valor contrário àquilo que aparece imediatamente, constitue uma das formas de convite à conversão no evangelho de João. Alguns exemplos disso são: A Luz brilhou nas trevas,mas as trevas não a receberam (Jo 1,5). A Ironia aqui se encontra no facto de as trevas, que são o símbolo da ignorância e do mal recusarem-se a receber a luz que é simbolo do conhecimento e da salvação.
Jesus respondeu-lhe: «Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas? (Jo 3,10). Como um mestre pode não saber se o seu papel é ensinar? Ora, se não sabe, ele deve deixar de ser mestre e se converter em discípulo.
Outro exemplo significativo de ironia é o episódio do cego de nascença (cf. Jo 9) em que o cego vê Jesus como o Messias, enquanto as autoridades não conseguem vê-lo como tal deixando entender que quem é cego são as autoridades.
Em contraste com os evangelhos sinópticos que apresentam uma única viagem de Jesus à cidade de Jerusalém que culmina com a sua páscoa, o evangelho de João apresenta três viagens à Jerusalém (cfr. Jo 2,13; 6,4; 12,1). Com estas viagens, o evangelho apresenta um contacto contínuo entre Jesus e as autoridades judaicas que se encontravam em Jerusalém. Sublinha ainda a rejeição das autoridades judaicas à mensagem de Jesus. Os sinópticos concentram a missão de Jesus na Galileia, enquanto João a apresenta mais orientada para Jerusalém.
Os Sinóticos relatam os acontecimentos da Última Ceia; João coloca a sua ênfase no discurso do Pão da Vida, através do qual Jesus promete entregar-se ao mundo através da Eucaristia (cf. Jo 6,35-58). O Evangelista tem um ouvido aguçado para o diálogo dramático, usando confrontos verbais para aprofundar a nossa compreensão de Jesus. Os diálogos de Jesus com a mulher samaritana (cf. Jo 4), com Marta (cf. Jo 11,20-27) e diante de Pilatos (cf. Jo 18,33-38; 19,8-11), revelam a identidade de Jesus pouco a pouco. À medida que os personagens do diálogo aprendem mais sobre Jesus, nós, leitores, também aprendemos. O quarto Evangelho dedica especial atenção aos momentos em que um mal-entendido deu a Jesus a oportunidade de explicar mais detalhadamente o seu significado, levando-nos a uma compreensão mais profunda das suas palavras e ensinamentos. Um exemplo famoso é o diálogo com Nicodemos, que não consegue entender como um homem adulto poderia ―nascer de novo‖ (cf. Jo 3,4-8).
4. Temas principais tratados no evangelho
O Evangelho de João começa com uma declaração da divindade e da humanidade de Jesus Cristo (Jo 1,1-18). A sua frase inicial proclama a divindade de Jesus: ―O Verbo era Deus‖ (Jo 1,1). O Evangelho atinge o ponto mais alto em João 20,28 com a confissão de Tomé: ―Meu Senhor e meu Deus‖. Entre estas declarações está o anúncio da filiação e missão divinas de Jesus. João não se concentra em parábolas, curas e exorcismos, como fazem os evangelhos sinópticos; Há apenas quatro milagres de cura (Jo 4,43–54; 5,1–15; Jo 9 e Jo 11). Cada um desses milagres, no entanto, tem um propósito teológico específico ao descrever o ministério de Jesus; assim, servem, como diz João, como ―sinais‖ que mostram quem é Jesus para aqueles que têm fé.Através desses sinais podem ver que Jesus é o Messias; vendo podem crer e, crendo, podem alcançar a vida eterna.
Nos relatos de João, aqueles que encontram Cristo começam um caminho, que pode ter duas direcções opostas. Pode conduzir à compreensão e ao discipulado (Nicodemos, Samaritana, Cego de Nascença) ou pode afastar totalemente de Jesus (cf. Jo 6, 66). Episódio após episódio, Jesus proclama a sua identidade, e aqueles que o ouvem iniciam um caminho de fé ou rejeitam-no.
O prólogo de João começa com um eco deliberado do relato da criação no Génesis: «No princípio» (1, 1), o «Verbo» de Deus como instrumento da criação (1, 1-3), «todas as coisas foram feitas» (1, 3), «a luz resplandece nas trevas» (1, 5). A adição importante é que Cristo, a Palavra, esteve presente desde o princípio. No resto do primeiro capítulo, vários títulos são aplicados a Cristo, incluindo Filho de Deus, Filho do Homem, Messias e Rei de Israel. O primeiro título, proclamado por João Baptista, é «Cordeiro de Deus» (1, 29, 36) e é ainda especificado com as palavras «que tira os pecados do mundo» (1, 29). Os Cânticos dos Servos do Senhor em Isaías (Is 42:1–4; 49:1–6; 50:4–9; 52:1353:12), com suas imagens explícitas do cordeiro em Isa 53:7, mostram o padrão da obediência de Jesus ao Pai. A imagem do cordeiro também ecoa o cordeiro pascal, morto para a salvação do povo de Deus. Jesus é o Servo sofredor que se deixa levar à matança sem queixa e que carrega os pecados da multidão. Ele é o filho obediente de Deus, cuja vida e morte resultam em libertação. ―Desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou‖ (Jo 6,38).
O “Livro dos Sinais”(caps. 1-12) começa com o chamamento dos primeiros discípulos e o milagre de Caná. Isto é imediatamente seguido pela limpeza do Templo, o santuário central da fé judaica que seria destruído e substituído por Jesus, o novo Templo (2,19-21). Esta parte do Evangelho também traça a reação daqueles que encontram Jesus, de Nicodemos (3,1-21) à mulher samaritana (4,1-42), ao oficial real (4,43-54), aos fariseus e às autoridades (por exemplo, 5,17-47; 6,25-59; 7,14-36; 8,12-59). Jesus dá sinais da sua identidade e do seu poder por toda a parte, culminando na mais dramática das suas manifestações: ressuscitar Lázaro dos mortos (capítulo 11). Com este acto, Jesus mostra ao mundo que possui o poder sobrenatural de dar a vida (11,25), mas também impulsiona os seus inimigos para a trama final para provocar a sua morte.
O “Livro da Glória” (caps. 13-20) inclui alguns dos mais belos discursos de todo o NT, incluindo a metáfora da videira e dos ramos (15,1-8) e a oração sacerdotal (cap. 17), que é uma espécie de prefácio (introdução) à narrativa da Paixão que se segue. A Paixão de Jesus é a realização das tarefas dadas ao Filho pelo Pai (cf. 4, 34; 5, 36; 17, 4; 19, 30), e a exaltação e a glória de Jesus revelam-se no mistério da cruz. Estas verdades revelam-se depois na história pela sua ressurreição: o mistério pascal inclui tanto a morte como a ressurreição do Filho. O drama do Evangelho de João atinge o auge com a confissão de fé de Tomé — ―Meu Senhor e meu Deus‖ (20,28). Finalmente, a verdade de Cristo é plena e explicitamente revelada. A confissão cristológica de Tomé é a fé da Igreja para todos os tempos.
Esboço de uma leitura afro-moçambicana do Evangelho segundo São João
Historicamente, a leitura ou estudo da Bíblia foi feita a partir de pontos de partida diferentes. Alguns leitores, fixaram-se (fixam-se) só no texto biblíco sem considerar as circunstâncias histórias da sua redacção. Outros estudos, caindo no extremo oposto, consideram só as circunstâncias históricas da sua redação, reduzindo a sua relavância ao passado. Na tentativa de realizar um estudo abrangente, que leva em consideração tanto o aspecto humano (histórico) como o aspecto divino (Palavra de Deus eterna e sempre actual), actualmente, a leitura da Bíblia pode ser feita prestando particular atenção a três aspectos transversais, a saber:
(a) O mundo atrás do texto: trata-se daquele ―estudo‖ de carácter mais histórico, procurando reconstruir o contexto social e cultural em que os textos surgiram. Esta investigação procura identificar o autor ou os autores do texto, a mensagem que procura transmitir, os destinatários da mensagem e a situação que teria originado a redação do texto. Esta leitura é importante porque ajuda o leitor actual a identificar as ―origens históricas‖ do texto. O ponto fraco deste estudo é que deixa o texto no passado como uma realidade já ultrapassada.
(b) O mundo do texto: este estudo enfatiza o texto como literatura. Destaca os géneros literários (tipo de texto: narrativa, poesia, provérbios, salmos, cartas ou epístolas, etc) e os vários recursos literários de que os autores se serviram para comunicar a sua mensagem. Este estudo dá importância à arte da escritura. A vantagem deste estudo se encontra no facto de aprofundar os detalhes que se encontram dentro do texto. O limite desta perspectiva é de insistir apenas no aspecto literário descurando a mensagem teológica que o texto contém.
(c) O mundo diante do texto: esta leitura das Escrituras enfatiza a situação do leitor actual do texto. Advoga que o leitor não é passivo na leitura do texto, mas colabora na produção do significado do texto. Para esta perspectiva um texto pode ter significados diferentes de acordo com o leitor. O leitor pode ser uma pessoa singular ou uma determinada comunidade. A vantagem desta leitura é que actualiza a Bíblia como Palavra de Deus, relevante para o leitor de hoje. Assim a Palavra se torna viva e guia da vida do leitor. O risco que esta leitura apresenta é de reduzir a Palavra de Deus às necessidades do leitor, desatendendo aspectos objectivos da Palavra de Deus.
Para uma leitura adequada os três aspectos devem ser tidos em consideração: o mundo dentro dos textos que dá a base histórica, o mundo do texto que ajuda a compreender a mensagem e o mundo diante do texto para tornar viva a mensagem.
Apresentando a leitura que destaca o mundo diante do texto, que designou ―abordagens contextuais‖, a Pontifícia Comissão Bíblica, declarou:
A interpretação de um texto é sempre dependente da mentalidade e das preocupações de seus leitores. Estes últimos dão uma atenção privilegiada a certos aspectos e, sem mesmo pensar, negligenciam outros. É então inevitável que exegetas adotem, em seus trabalhos, novos pontos de vista que correspondam a correntes de pensamento contemporâneas que não obtiveram, até aqui, uma importância suficiente. Convém que eles o façam com discernimento crítico.
Pontifícia Comissão Bíblica, Interpretação da Bíblica na Igreja (1994).
Como um leitor-crente (cristão) moçambicano, individual ou comunitário, pode ler o evangelho de São João como interpelação de Deus nas concretas circunstâncias históricas em que o país e o mundo se encontram?
Naturalmente, as respostas são diversas, tanto quanto as diversas circunstâncias particulares dos leitores. Seguem-se alguns exemplos sugestivos:
1. O Mistério da Incarnação da Palavra de Deus: o evangelho de João inicia revelando que a Palavra Eterna de Deus se faz pessoa, carne, história. A Palavra de Deus, Jesus Cristo, se faz pessoa e partilha tudo que é humano, menos o pecado. A Palavra eterna se limia no tempo. Despede-se da sua omnipotência divina e assume a vulnerabilidade humana para se identificar e transformar todos os que são vuneráveis. Do mistério da encarnação se revelam ―três movimentos‖ da Palavra de Deus. O primeiro movimento é descendente. A Palavra de Deus desce dos céus para a terra. Deus vem ao encontro dos homens e mulheres, como um deles; como pessoa. Nada do que é humano é alheio à Palavra encarnada. O segundo movimento é horizontal, Deus humanado vai ao encontro dos homens, seus ―semelhantes‖ nas suas alegrias (bodas de Caná), nas suas dúvidas e inquietações (Nicodemos), na sua angústia e solidão (A samaritana). O terceiro movimento é ascendente. A Palavra encarnada, concluída a sua missão, leva aos céus toda a humanidade. No Filho, Palavra encarnada, temos a vida eterna(cf. Jo 20,30). O mistério da Incarnação tem uma relevância particular para o leitor afro-moçambicano. Algumas linhas teológicas do passado interpretaram a pobreza, muitas vezes ligada à situação dos negros como maldição divina. O mistério da encarnação sugere o oposto, Deus não abandona o ser humano nem o rejeita. Como sinal do seu amor infinito, manda o seu Filho que assume as dificuldades dos homens e mulheres que sofrem.
Muitas vezes, o crente afro-moçambicano se sente rejeitado e abandonado. Vê a sua dignidade humana violentada. Os diversos sistemas políticos que se instalam não colocam este crente no centro das suas preocupações. Como a Palavra rejeitada pelas trevas (cf. Jo 1,11), o leitor afro-moçambicano se encontra sem apoio. No meio deste cenário dramático, o percurso da Palavra de Deus (humanização da divindade – encontro-partilha da dividande e da humanidade – divinização da humanidade) é também o percurso do leitor afro-moçambicano. Assim o leitor-crente afro-moçambicano encontra força na actuação histórica da Palavra de Deus.
2. Da tradição ―cultural‖ à Fé em Cristo, o exemplo de Nicodemos: Nicodemos é apresentado no evangelho como mestre. Uma autoridade judaica que deve deixar os seus privilégios para se tornar discípulo de Jesus. No nosso contexto afro-moçambicano, aceitar a fé significa abandonar as nossas tradições religiosas, culturais para abraçar a fé em Cristo. Não é uma transição fácil. Existe o risco de ficar pelo meio do caminho, com um passo na tradição e no passado e com outro na fé cristã. Nicodemos, mesmo já sendo de idade e com muitas responsabilidades religiosas, teve a coragem de se interrogar. Notou que algumas das suas convicções não eram coerentes com a fé em Cristo. Aceitou a dor de deixar tradições muito profundas e libertou-se totalmente para viver coerentemente a vida cristã. As nossas tradições culturais tem muitos valores que devem ser conservados. Mas também tem outros elementos que são claramente contra os valores cristãos. A mudança é difícil e é gradual, mas necessária e imprescindível. Uma fé cristã profunda e coerente não se compactua com práticas culturais tradicionais e modernas contrárias ao evangelho.
3. Construir pontes: É possível igualmente ler em chave afro-moçambicana o episódio de Jesus e a mulher samaritana que se encontra no capítulo quarto (Jo 4). Este longo episódio apresenta muitos elementos importantes. Consideramos alguns deles. O encontro de Jesus com a samaritana tem pelo menos 3 níveis. Primeiro, trata-se do encontro de um homem com uma mulher. O homem é Jesus e a mulher é a samaritana. Da parte do homem existem duas atitudes que parecem contradiórias. De um lado, é o atrevimento ou ousadia. Sem a conhecer, Jesus inicia um diálogo com ela, o que não era conforme as convenções do tempo. Por outro lado, tal diálogo revela-se respeitoso e muito diferente das experiências que a samaritana teve no passado. Jesus, de alguma forma quebra as convenções culturais, falando com a mulher. Mas tal quebra não tem o objectivo de tirar algum proveito pessoal, como infelizmente acontece em ocasiões similares. Jesus não está a pensar primariamente no seu benefício ou vantagem pessoal. Toda a sua atenção está voltada para ela. Ele não se aproveita dela, mas a liberta. Um segundo nível de análise envolve o encontro entre um homem e uma mulher que pertence a duas ―tribos diferentes‖. O homem é judeu e a mulher é samaritana. Por antigas razões históricas havia grande rivalidade entre esses dois grupos humanos. Com a sua atitude, Jesus instaura uma nova e reparada relação entre esses dois grupos e, como revela o episódio, chegará a atingir mais pessoas. Jesus não se limita a repetir o passado de ódio e de hostilidade. Mesmo conhecendo a história, tenta superá-la construindo uma ponte de fraternidade e de união. Um terceiro nível importante é o nível de encontro divino-humano. Jesus que é filho de Deus (cf. Jo 1,18), se apresenta de forma muito frágil, inicialmente irreconhecível. Apresenta-se cansado e com sede. Uma condição muito humana assumida divinamente. É Deus-humanizado que assume o cansaço e a sede do homem e ―ironicamente‖ pede a ajuda humana. Deus se ―disfarça‖ em aspecto humano; aspecto de vulnerabilidade e de fragilidade. Este facto tem uma revelância muito grande. Significa entre outras coisas que em cada cansaço e sede humana, existe uma divindade vulnerável, disfarçada. Uma divindade que ―pede‖ ao seu humano um copo de água. Num contexto afro-moçambicano em que existem muitas mulheres desgraçadas, instrumentalizadas, descartadas, este episódio apela à nossa consciência a instaurar relações de género mais respeitosas que sirvam de ponte para a reparação das relações entre as diversas tribos nacionais e africanas.
4. Pão terreno e pão celeste: O discurso do Pão que se encontra no capítulo 6 do evangelho de João foi correctamente interpretado como um discurso eucarístico. De facto, existem dentro do texto muitos elementos que orientam para a eucaristia. As próprias palavras orientam os escutadores de Jesus a trabalhar pelo pão de vida eterna. Para um cristão que se encontra no contexto em que as suas necessidades materiais já se encontram satisfeitas, claramente a ênfase se pode colocar sobre a eucaristia. Contudo, para um leitor afro-moçambicano, ao legítimo discurso eucaristico se deve juntar o discurso do ―pão terreno‖, tão necessário quanto aquele celeste. Aliás, o próprio senhor Jesus, antes de introduzir o pão que não perece, primeiro ofereceu o pão material para saciar a fome da multidão. O evangelho é vida e vida em abundância (cf. Jo 10,10). Por isso, anunciar a boa nova de Jesus é oferecer àqueles que aderem a Jesus tanto a vida material (dignas condições de vida humana, desenvolvimento integral) bem como o pão que não perece e serve de alimento para a eternidade. Um ulterior elemento presente neste discurso é o facto de que os dois pães e cinco peixes foram oferecidos por um rapaz que estava no meio da multidão. Alguns comentadores referem que provavelmente aquele rapaz era um servo e aqueles pães e peixes eram o seu salário diário. Esse servo, pobre e necessitado, não se fechou nas suas necessidades, mas soube partilhar o pouco que tinha. Para um leitor afro-moçambicano, esse elemento é muito relevante na medida em que revela que as ―soluções dos nossos problemas‖ devem vir do pouco que temos abençoado por Jesus. Em outras palavras, será a nossa capacidade de generosidade e a nossa fé que nos farão sair da fome e da miséria.
Conclusão
A apresentação geral do evangelho de João não tem meramente uma importância histórica. Sendo o evangelho um evento histórico, o conhecimento do contexto da sua redacção visa o compreensão da sua mensagem, a qual deve motivar o ―confronto‖ entre essa (a mensagem) e os leitores-escutadores do evangelho na actualidade. Diante de nós, temos a fundamental tarefa de tornar o texto bíblico palavra de Deus, actualizar a comunicação de Deus para nós hoje através do Seu Filho, Jesus Cristo, nas especificas condições históricas em que nos encontramos. Se não conseguirmos atualizar a mensagem do evangelho, o texto de João vai ser apenas uma memória histórica ou uma bela página de literatura, mas não a Palavra de Deus.
Questões de aprofundamento
1. Qual é a importância do conhecimento do contexto histórico da redacção do evangelho de João para o leitor actual?
2. Como se pode ler a Bíblia em geral e o evangelho de João de modo tipicamente africano e moçambicano?
3. Quais são os temas mais relevantes do evangelho de João para nós hoje?