V SEMANA BÍBLICA: 3º Dia – JOÃO 1: JESUS COMO A PALAVRA E OS PRIMEIROS DISCÍPULOS

V SEMANA BÍBLICA: 3º Dia – JOÃO 1: JESUS COMO A PALAVRA E OS PRIMEIROS DISCÍPULOS

3ª Dia: Terça-feira, 17 de setembro de 2024

Pe. José Pasasi Nazário

INTRODUÇÃO

Antes de tudo, convém ter em conta que cada um dos quatro Evangelhos tem seu estilo de começar a narração. Para nossa compreensão, eis o quadro[1]resumo:

Mateus vincula-se com a história da salvação, apresentando de imediato Jesus Cristo como Filho de David e Filho de Abraão. Ao apresentar a lista genealógica de Jesus, Mateus põe de relevo a sua pertença ao povo de Israel e mostra como a história de Deus e o seu povo tem nele o seu cumprimento e a sua meta (Mt 1,1-17).

Marcos faz referência à pregação da Boa-Nova no seu tempo, que tem este conteúdo: «Jesus é o Cristo, o Filho de Deus. Com sua obra, Marcos nos mostra o princípio, quer dizer: a origem, o fundamento dessa pregação;

Lucas começa a sua narração com o prólogo, ao modo dos historiadores antigos. Começa com o nascimento de S. João Baptista (Lc 1,5-25). O protagonista do seu evangelho vai entrando aos poucos, até tomar o seu lugar, começando pela menção do seu nome, em Lc 1,31, passando pela sua posição, em Lc 2,11.

João, antes de chamar Jesus Cristo pelo seu nome (Jo 1,17), define, em Jo 1,1-13 sua identidade essencial; e em Jo 1,14-18 descreve a forma, o conteúdo e o objectivo da sua vinda à terra.

Convencionalmente, o Cap. 1 desse Evangelho é dividido em 2 partes:

  • Identidade de Jesus (1-18)
  • Acção da Palavra (19-51)

É justamente na segunda parte do texto, mas sem ignorar a primeira, onde encontramos a vocação dos primeiros discípulos.

No meio está a importantíssima figura de João Baptista, cuja missão consiste em dar testemunho de Jesus (Jo 1,7). É interessante sublinhar aqui dois aspectos: João Baptista apresenta Jesus como o Cordeiro que tira o pecado do mundo (Jo 1,29). Depois disso, João Baptista desaparece consideravelmente, dando azo àquela sua máxima: «que ele cresça e eu diminua» (Jo 3,30).

I. QUEM É JESUS?

No IV Evangelho, ainda antes de falar, Jesus recebe 6 apelidos (títulos):

«Palavra, Luz, Vida, Messias, Cordeiro de Deus; Filho de Deus». A partir daqui, o leitor do IV Evangelho espera com ânsia escutar as primeiras palavras dessa figura pomposamente apresentada. Mas quando se concretizará isto? Ou seja: quando é que aquele que foi apresentado como a Palavra de Deus pronunciará as primeiras palavras?

Veremos ou escutaremos em breve. Antes, porém, queremos voltar ao detalhe da identidade de Jesus.

Ao longo do IV Evangelho é constante e curiosa a pergunta dos discípulos sobre Jesus: «Quem es tu?» (cf. Jo 8,25; 10,24; 18,33). Sabemos que uma indagação de género, mais do que simples nome, procura ir mais além, para saber sobre: a origem, a missão (…) de Jesus. Surpreendentemente, a resposta de Jesus nunca é directa; aliás, em certas ocasiões, o texto parece recuar a visão do interrogante, como se atrás já houvesse um quadro genealógico de Jesus (cf. Jo 10,25a). Neste sentido, o Prólogo pode ser visto como um esquema genealógico de Jesus, paralelamente comparado aos sinópticos (cf. Mt 1,1-25; Mc 1,1; Lc 3,23-38).

1. A Palavra: voz e nome de Deus

Nos textos targúmicos8,e aqui tomamos o exemplo do Pentatêuco, surpreende[1]nos a frequente substituição Memrá de Yahweh, que se traduz por «Palavra de Yahweh», onde o texto hebraico diz simplesmente «Deus» (Yahvé ou Elohim).

O mesmo acontece com os pronomes pessoais referentes a Deus (Eu, Tu, Ele), que muitas vezes são substituídos pelas fórmulas: Menri, Memrek,

Memreh (Minha Palavra, Tua Palavra, Sua Palavra).

Estas e outras referências levam-nos a perceber que os rabinos entendem a «PALAVRA» nunca isolada de Deus; aliás, até podemos dizer que se trata de «Deus mesmo». O autor que tomamos como referência entra em grandes pormenores, que aqui não citaremos todos, para demonstrar que Jesus Cristo, «o Logos» é a «Memrá de Yahweh» que cria, que fala, que abençoa, que aperfeiçoa e, sobretudo, que revela a Deus. Menrá é, neste sentido, «a boca de Deus, a voz de Deus e o nome de Deus»10, numa compreensão mais simples que podemos tomar.

Segundo a literatura de Qumrãn, aqui tomamos com referência «o rolo de guerra», os homens estavam «sempre» nas trevas por causa do seu mau comportamento (1QS 3,21; 4,9-14). Para esses homens que habitam nas trevas, dizem os manuscritos «1 QM 13,15», Deus quer iluminá-los com a sua

LUZ. Essa Luz tem um nome; chama-se PALAVRA11. Provavelmente, é desta verdade que alude o «Proto-Isaías», num texto que se lê na Vigília do Natal, ao dizer que «o povo que andava nas trevas viu uma grande Luz. Para aqueles que habitavam nas sombras da morte, uma luz começou a brilhar» (Is 9,1). A Diz-se «texto targúmico» à interpretação em aramaico da Bíblia hebraica, produzida ou compilada por judeus desde os finais do segundo Templo até aos começos da

Idade Média. A palavra aramaica «targum» significa «interpretação».

9

Cf. D. MUÑOZ LEÓN, Dios Palabra. Menrá en los targum del Pentateuco (Institución

San Jerónimo 4; Santa Rita, Granada 1974) 26.

10Cf. Ibid. 27-57.

11 A. LLAMAS VELAS, “Tinieblas”, en: F. FERNÁNDEZ RAMOS, Diccionario del mundo joánico…951-955.

LUZ-PALAVRA que ilumina o caminho dos que habitam nas trevas e

transforma as sombras de morte em oásis de vida é Jesus Cristo (cf. Jo 8,12).

2. A Palavra: agente da criação

Começo por dizer, citando a exortação apostólica pós-sinodal «Verbum

Domini», que a PALAVRA é o fundamento de toda a realidade. É por isso que

o Prólogo de São João afirma, referindo-se ao «Logos divino» ou PALAVRA[1]divina, que «tudo começou a existir por meio d‘Ele, e, sem Ele, nada foi criado» (Jo 1,3)12.

Nesta linha, é fácil perceber que a história dos hebreus é um processo governado pela palavra de Iahweh. Aliás, é uma história que se identifica muito com a palavra de Iahweh. Como diremos mais adiante, essa palavra assume dois significados fundamentais: «dinâmica e dianoética». É dinâmica, no sentido de que cumpre o que significa. É dianoética, no sentido de que torna a história inteligível.

Esta palavra é um «agente criador» (cf. Gn 1, Sl 33,6.9; 147,4; Is 40,26; 48,13). O primeiro relato da criação (Gn 1,1-2,4ª) apresenta o céu e a terra como obra da PALAVRA soberana de Deus. Por 10 vezes, o texto repete a expressão (va yomer elohim) «e Deus disse». Não se trata de uma casualidade: a Bíblia começa com «dez palavras», um «decálogo» criador. O decálogo que se promulgará no Sinai (cf. Ex 20, Dt 5) funde suas raízes nesta palavra criadora de Deus.

No relato da criação, como se pode ler no texto sacerdotal ou Gn 1, Deus simplesmente fala e se realiza a sua PALAVRA: «e assim sucedeu». E no NT, segundo o prólogo de S. João, a palavra precede e preside a TUDO (cf. Jo 1,1-12 Cf. BENTO XVI, “Verbum Domini”. Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (Paulus, Lisboa 2010), 8.

3). A mesma palavra que no princípio estava em Deus (cf. v 1b) tem em si a força e o dinamismo capazes de originar todas as coisas.

Nesta perspectiva, a criação pode ser considerada como a primeira acção da palavra. E a criação faz parte dos passos da revelação de Deus. É por isso que a palavra continua a criar o mundo, quer seja na presença sacramental da

Igreja, quer seja na acção doutrinal ou sapiencial dos tempos. Só para citar uma dessas ocorrências:

No diálogo de intercessão à favor de Sodoma e Gomorra, Abraão pressupôs encontrar na cidade 50 justos, em nome dos quais Deus não destruiria a cidade. Este número, segundo a previsão de Abraão, foi baixando de 45, 40, 30, 20 até parar em dez (cf. Gn 18,24-32). Será que Abraão não podia descer mais? Na verdade, Abraão termina em dez, cuja simbologia numérica recorda os mandamentos, que constituem o esquema-resumo da palavra que criou e continua a criar.

Com o Deuteronómio aparece a concepção da «LEI» escrita como palavra de Iahweh (cf. Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4). Esta palavra de Iahweh é a vida de Israel.

Finalmente, esse conceito desenvolveu na concepção dos livros sagrados como a PALAVRA DE DEUS. É por isso que, como dizem os santos Padres, toda a Bíblia é Palavra de Deus; mas nem toda a Palavra de Deus está na Bíblia. Aliás, é o mesmo que se pode ler na dupla concussão do IV Evangelho:

«…há ainda muitas outras coisas que foram realizadas…» (cf. Jo 30-31; 21,25).

3. Jesus é a Palavra (verbo)

Para João, Jesus é o Verbo, em Grego Logos. Com esta definição, João expressa a mais íntima realidade de Jesus, sua origem ou procedência. Neste sentido, o Prólogo do IV Evangelho apresenta a identidade e a história da Palavra que desde o princípio está junto de Deus (Jo 1,1). No fim desse texto, muitas vezes tomado como raro e estranho, o autor nos diz que essa Palavra é Jesus Cristo (Jo 1,17). 4. Jesus é a Palavra pré-existente e criadora.

O IV Evangelho começa com uma expressão que, se quisermos entendê-la como uma inclusão bíblica, transporta a nossa compreensão para o começo de toda a narração bíblica: «Ἐν ἀρτῇ» (no princípio). Quando lemos ou ouvimos a expressão «no princípio», geralmente nos deslocamos para o relato da criação do mundo (cf. Gn 1,1), onde a palavra exerce a função criadora; ou ao relato sapiencial (cf. Pr 8,22-23; Aclo 24,3), onde a Sabedoria é apresentada com uma função mediadora entre o céu e a terra. A mesma expressão voltará a aparecer no início da pregação de Jesus (cf. Jo 6,64) e também no meio e quase no final do texto do IV Evangelho (cf. Jo 8,44; 15,27; 16,4). Em cada uma dessas ocorrências, a expressão «no princípio» tem referência temporal. Entretanto, no texto em destaque (Jo 1,1), a expressão «Ἐν ἀρτῇ» remete-nos à eternidade e, ao mesmo tempo, à divindade do «Logos», o qual não só existia no princípio, senão que também estava orientado para Deus e era Deus13.

Fazendo eco às primeiras palavras do Génesis (cf. Gn 1,1), o prólogo de João é uma ilustração dos eventos narrados no Evangelho, quais parte integral da história do universo. Ao longo do texto, é interessante notar como o vocábulo Logos mexe com um amplo espectro de significados, não só no contexto religioso, mas também na vastidão cultural da época, o que leva a crer que tal conceito é explorado aqui de uma maneira poética, permitindo ao autor evocar, ao mesmo tempo, tanto a tradição hebraica quanto a tradição grega.

Nesta perspectiva, a sabedoria de Deus, tal como a vemos personificada no Cf. L. SÁNCHEZ NAVARRO, “Verbum Domini: una visión logocéntrica de la fe cristiana”, en: L. SÁNCHEZ NAVARRO (ed), Escudriñar las escrituras. Verbum Domini y la interpretación bíblica (USD, Madrid 2012), 85-100.

Antigo Testamento, abre caminho para a relação que João estabelece, ao identificar o Verbo (Logos), com o Cristo encarnado.

Neste sentido, o nosso trecho pode ser entendido como a chave de leitura das maiores fórmulas das doutrinas da nossa fé. No IV Evangelho, de maneira muito particular, a incidência do «Logos» na criação tem três dimensões: a palavra que é luz (cf. Jo 1,4); a vida eterna dada pelo Espírito Santo (cf. Jo 3,6); e o mandamento novo, que é o modo de viver essa vida (cf. Jo 13,34; 15,12)14. Por isso, o «Logos» (Jesus) pertence à mesma essência ou natureza divina com o Pai e o Espírito Santo (cf. Jo 10,30. 1 Jo 5,6-12).

II. OS PRIMEIROS DISCÍPULOS

O prólogo e o testemunho de João «Baptista» constituem um conjunto único.

Sobre o discipulado, é interessante observar que é João quem faz o primeiro encontro com Jesus. Por duas vezes, João «Baptista» reconhece Jesus como «o Cordeiro de Deus». Desde encontro e reconhecimento, como mais tarde veremos, nasce um itinerário novo para inúmeras personalidades vocacionais. Outro facto interessante: João não vincula os discípulos à sua escola, senão lhes indica a verdadeira fonte de sabedoria, Jesus Cristo.

1. A indicação de João «Baptista»15

Por duas vezes, João Baptista indica Jesus como o Cordeiro (de Deus) que tira o pecado do mundo (Jo 1,29.36). Para os discípulos, aquela indicação serviu como marco e ponto de partida para um novo itinerário de vida.

14 Cf. J. L. LORDA, Antología bíblica. De Adán a Cristo (Palabra, Madrid 2005), 199-200.

15 Seguindo o costume dos Evangelhos sinópticos, chamamos essa figura de «João Baptista». Entretanto, é importante recordar que no IV Evangelho, esse personagem nunca recebe o título de Baptista, apesar de que ali também se menciona o seu acto de baptizar.

Igual gesto ou atitude acontece na nossa vida. Há sempre alguém que funciona como João Baptista. O desafio consiste em saber reconhecer e valorizar essas anónimas e nominadas mediações da nossa vocação para a vida, para a fé, para o bem, para o sucesso, e para quaisquer caminhos que para nós Deus quiser.

2. Seguir Jesus

Seguir Jesus é a expressão favorita que o IV Evangelho usa para definir o discipulado. Basta notar que o verbo «seguir» ocorre 18 vezes no Evangelho segundo S. João que, tirando apenas duas ocorrências (em Jo 11,26.31), sempre se refere à pessoa de Jesus, no sentido espiritual e vocacional. Trata[1]se aqui, e com bastante profundidade, de seguir uma pessoa e não uma ideologia.

Jesus é o Caminho, é a Verdade, é a Vida (…). Seguir Jesus significaidentificar-se com a sua pessoa. Tal é o exemplo que Jesus utiliza ao colocar a imagem da ovelha na estreita relação com o seu pastor (cf. Jo 10,4.5.27).

Se para os Evangelhos sinópticos o discipulado requer renúncia de bens, para o Evangelho segundo S. João, o discipulado requer renúncia da própria vida, que é a renúncia radical, que engloba as demais renúncias. Desta maneira, o Evangelho segundo S. João distancia-se dos esquemas históricos do discipulado para colocar um paradigma novo. Ser discípulo de Jesus encontra na expressão «e seguiram-no» não só uma novidade, como também um desafio: seguir é lançar-se no mundo da fé e da confiança.

3. Buscar Jesus

Finalmente, Jesus fala. As suas primeiras palavras dirigem-se aos discípulos de João que depois de ouvirem que Ele é o Cordeiro que tira o pecado do mundo, seguem-no. Interessante! A primeira palavra que sai da boca de Jesus é uma pergunta: «Que buscais?».

À primeira vista, a pergunta de Jesus (Jo 1,38) parece ser mero ponto de partida de um simples diálogo. Entretanto, se olharmos para lá das palavras, notamos que aquela pergunta focaliza e concretiza a busca dos discípulos e permite a narrativa da relação entre Jesus e seus primeiros discípulos. É tudo isto. Mas há algo mais: a pergunta de Jesus desenha os contornos do primeiro encontro de Jesus com os discípulos (Jo 1,35-51) em dois sentidos:

A nível narrativo, a busca de Jesus é um motivo em desenvolvimento ao interior de todo o relato;

Ao nível programático, a busca de Jesus é um convite para qualquer leitor e ouvinte do IV Evangelho.

As palavras iniciais de Jesus anunciam um motivo frequente no IV Evangelho: a busca de Jesus. Aliás, o verbo buscar pertence ao vocabulário típico de João.

O objecto desse verbo transitivo é frequentemente Jesus. Jesus é também o acusativo explícito do verbo buscar em muitas passagens: Jo 6,24.26; 7,34.36; 8,21; 13,33. É ainda objecto implícito em Jo 18,4.7; 20,15.

4. Quem busca quem?

No IV Evangelho, todos os personagens estão envolvidos na busca de Jesus.

Entretanto, cada grupo ou indivíduo diverge do outro através das motivações. É por isso que logo no princípio, a pergunta sobre a busca se faz como folha de rosto de todo o projecto de discipulado:

Os discípulos buscam Jesus para ficarem com ele;

Os judeus buscam, mas estão contra Jesus. Por isso o buscam;

A multidão também busca Jesus por causa do pão (Jo 6,24.26;

Essa busca, segundo o esquema geral, classifica-se em 3 blocos, de acordo com os critérios do sujeito:

A busca dos adversários: o objectivo é matar

A busca das multidões: o objectivo é comer pão

A busca dos discípulos: o objectivo é ficar com Jesus

Para o nosso caso interessa o 1º grupo. Nessa busca, a iniciativa é sempre de

Jesus que interroga os seus interlocutores sobre o objecto da sua busca:

Aos discípulos: o que/quem buscais?

Aos seus adversários: quem buscais?

A Maria Madalena: quem buscas?

A pergunta sobre a busca é o ponto de partida para o discipulado no IV Evangelho. Vejamos:

O verbo da pergunta é conjugado no presente, enquanto os verbos precedentes estão no aoristo (passado). Para qualquer discípulo, Jesus é um sujeito do presente. Jesus continua a falar, no hoje de cada homem e mulher que O quer seguir, dirigindo-nos a sua pergunta: a quem buscais?

Os dois discípulos que escutam a pergunta de Jesus aparecem no anónimo (Jo 1,35). Mais adiante, o narrador revela que um deles se chama André, irmão de Simão Pedro, mas sem identificar o outro. Esse anonimato deixa espaço para qualquer leitor entrar no mundo do relato. Esse discípulo anónimo é uma janela ou ponto de vista desde o qual o leitor do IV Evangelho se introduz na história narrada.

A vocação dos primeiros discípulos (Jo 1,35-51) contém algumas notas interessantíssimas, através das omissões propositadas que o texto faz: o lugar onde Jesus habita. Aliás, os próprios discípulos se interessam com isso, quando dizem: mestre, onde moras? (Jo 1,38), ao que Jesus responde: «vinde e vereis». Eles foram e viram onde vivia. Mas, na mesma, ficou o enigma: «onde Jesus habita e o que foi que os discípulos viram?». Curiosamente, o narrador faz silêncio a esses pormenores. É aqui onde, mais uma vez, pensamos que cada discípulo sabe melhor de ninguém. Sabe que ser discípulo é conhecer Jesus: ir ao seu encontro e ficar com ele, onde Ele vive.

A introdução de Natanael (atenção que nos Evangelhos Sinópticos se chama Bartolomeu) na narração, o texto parece deixar-nos ainda mais em «suspense»: primeiro, Filipe repete a Natanael o mesmo convite feito por Jesus: «vem e verás» (Jo 1,46). Aqui voltamos à pergunta: «ver o quê»?

Depois, o mesmo Jesus diz que viu Natanael quando estava debaixo da figueira (Jo 1,48.50). Curiosamente, até aqui nunca se tinha mencionado, no texto, essa figueira. E mais: o que terá passado debaixo dessa figueira? O que viu Jesus? Mais interessante é o fim, quando o texto nos abre a visão para o

futuro, com a promessa de Jesus a Natanael: «verás coisas maiores» (Jo 1,50). Mais uma pergunta: que coisas maiores veremos? O texto, aqui sim,

deixa um resumo interessante: «vereis o céu aberto, e os anjos de Deus subir e descer sobre o Filho do Homem».

PERSPECTIVAS E MEDITAÇÃO

Em conclusão, estes e outros pormenores criam no leitor uma expectativa, fazendo brotar nele a mesma pergunta que Jesus fez aos discípulos: a quem buscais? O leitor de todos os tempos é convidado a perguntar-se e a buscar onde habita Jesus e o que deve ver.

Estas três estratégias, o presente histórico, o anonimato do discípulo e as omissões de pormenores introduzem o leitor no mundo do relato e fazem com que a pergunta de Jesus, «o que buscais?» nos toque profundamente.

Para nossa meditação, deixo duas questões, a título final:

1. Na actualidade da nossa vida, qual é a eficácia da palavra na vida concreta dos crentes? A palavra funciona como um recipiente neutro que recolhe e derrama a realidade do mundo sem mudá-la, ou produz efeitos criacionais e relacionais?

2. Como cristãos, quem são os mediadores da nossa fé e que atitudes deles esperamos?

BIBLIOGRAFIA

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palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (Libreria Editrice Vaticana,

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