V SEMANA BÍBLICA: 5º Dia – A ÚLTIMA NOITE DE JESUS COM OS SEUS DISCÍPULOS (Jo 13-17)
5º Dia: Quinta-feira, 19 de setembro de 2024
P. Daniel A. Raul
(Sacerdote Diocesano do Guruè)
e-mail: draul@ucm.ac.mz
quitxue@gmail.com
cel.: 848195373
1. Introdução
Os capítulos 13-17 do Evangelho de João, que são objecto da nossa comunicação nesta edição da Semana bíblica nacional, são conhecidos não só por constituirem a última noite que o Mestre passa com os seus discípulos, como também a noite em que Jesus pronuncia diversos discursos de despedida, deixando assim uma série de ensinamentos e das frases famosas do Quarto Evangelho. Com efeito, nos Evangelhos sinópticos está praticamente ausente uma secção semelhante, excepção seja feita a Lc 22,21-38, considerado um texto que pode ter tido algum influxo sobre o Quarto Evangelho. Embora, normalmente, os 5 capítulos sejam designados como ―discursos de adeus ou de despedida‖, em sentido mais estrito, os discursos de despedida circunscrevem-se a 13,31-16,33, pois antes disso encontramos o ―Lava-pés‖ (Jo 13,1-20), seguindo-se o anúncio do traidor e a sua saída; já no c. 17 encontramos a oração ―sacerdotal‖ de Jesus.
2. Delimitação da secção em estudo (Jo 13-17)
Há um consenso bastante generalizado em relação à divisão do evangelho de João em duas partes, a saber:
a. O Livro dos sinais (cc. 1-12);
b. O Livro da glória (cc. 13-21). É precisamente nesta segunda secção que se situa o nosso texto.
No que diz respeito à delimitação da secção, autores como SIMOENS18 chamaram atenção sobre a presença de uma estrutura concêntrica com a abertura em Jo 13,1-38, com o tema de amor e a glorificação e o seu fecho em 17,1-26, com o mesmo tema, tendo como centro Jo 15,1-16,3: binómios alegria/ódio e permanecer/perseguição (centro do centro: 15,12-17: o tema do amor). Porém esta interessante estrutura encontrou vários obstáculos e poucos aderentes.
Outros autores preferem reconhecer que Jo 13-17 não é um texto homogéneo, com os seguintes fundamentos: por exemplo, do convite de Jesus aos discípulos para se levantarem e ir-se embora em Jo 14,31, dá-se lugar a um material discursivo muito abundante e a oração de Jo 17, daí que o tal v. 31 do c. 14 encontrou ao longo da história várias explicações, incluindo a explicação de um levantar-se espiritual ou um levantar-se físico seguido de discurso de Jesus ao longo do caminho. Notam-se também duplicações: o Lava-pés narrado nos vv. 1-5 encontra uma primeira interpretação soteriológico-sacramental nos vv. 6-11 e uma interpretação mais pastoral em 13,12-20, onde a acção de Jesus serve como modelo de comportamento dos seus discípulos; a partida de Jesus e seu novo regresso no c. 14, esses temas são retomados em 16,4b-33; O mandamento de amor mútuo encontra-se pela primeira vez em 13,34s e é retomado em 15,12-17; as palavras do Paráclito são repetidas várias vezes (2x no c.14; 1x no c.15 e 2x no c. 16).
Perante o cenário acima descrito, pensa-se que ao núcleo original dos cc. 13-14 (depois dos quais seguia Jo 18,1), tenha havido um trabalho redacional ou ―crescimento orgânico‖ do texto com o acréscimo dos cc. 15-17 – mesmo que as ajuntas fossem feitas pelo próprio evangelista ou que fossem feitas por membro do grupo ou grupo de membros da comunidade em harmonia com as posições teológicas da ―redacção joanina‖.
Dito isto, e tendo em conta o texto actual, para o nosso estudo propomo-nos guiar pela seguinte estrutura:
Jo 13,1-5.6-11: O lava-pés e a sua primeira interpretação
Jo 13,12-20: Segunda interpretação do lava-pés
Jo 13,21-30: Anúncio da traição e partida do traidor
Jo 13,31-38: Abertura (geral) dos discursos de despedida/a negação
de Pedro
Jo 14,1-31: Primeiro discurso
Jo 14,1-4: Início do Primeiro discurso
Jo 14,5-14: Primeiro discurso: A partida de Jesus e a união com
Ele na fé
Jo 14,15-24: Primeiro discurso: O regresso de Jesus e a união com
Ele no amor
Jo 14,25-31: O fecho do Primeiro discurso
Jo 15,1-16,4a Segundo discurso ou uma série de 3 discursos?
Jo 15,1-8: Discurso intermédio: Jesus é a verdadeira videira
Jo 15,9-17: Discurso intermédio: o Mandamento do amor
Jo 15,18-16,4a Discurso intermédio: o ódio do mundo
Jo 16,4b-16,33 Terceiro discurso de despedida
Jo 16,4b-15: Terceiro discurso: Anúncio do Espírito Paráclito
Jo 16,16-24: Terceiro discurso: Anúncio da tristeza e da alegria
Jo 16,25-33: Terceiro discurso: A hora que deve vir
Jo 17: A última oração de Jesus
18 SIMOENS, Y. (1981). La gloire d’aimer. Structures stlistiques et interprétatives dan le
3. O Género literário do Discurso de despedida
Os discursos de despedida que são usados nesta secção de João, não são uma invenção joanina. Existe sim um modelo consolidado, no contexto ambiental (especialmente no intertestamento), que o autor usou para transmitir a mensagem de Jesus, neste momento particular da sua vida e da vida dos discípulos e da igreja.
No contexto acima referido, os discursos de despedida apresentam os seguintes elementos:
a. A pessoa que está para morrer (ou está para ser elevada ao céu) chama os seus para lhes falar (filhos ou sobrinhos);
b. Ele dá suas exortações, sendo de destacar as obras de misericórdia, ao amor, à caridade fraterna e à concórdia;
c. Algumas afirmações sobre o futuro da comunidade ou o fim dos tempos encontram-se no fim dos discursos.
Exemplos no AT: Tob 4 e 14; No NT: Act 20,17-38: Paulo em Mileto.
Dos elementos acima indicados, três tiveram um influxo no género literário de discursos de despedida: elemento apocalíptico (anúncio de futuro numa situação caracterizada por pressão); Um elemento de midrash (reinterpretação ou actualização de um texto bíblico) e um elemento sapiencial (a busca de uma compreensão do mesmo e uma relação equilibrada com as coisas criadas, com os homens e com o criador). A estes elementos se deve acrescentar o destinatário ―filhos‖. O elemento midrashico é muito importante, inclusivamente para a compreensão de Jo 13-17.
discours de la Cène. Roma: BIP.
4. O texto e sua explicação
Jo 13,1-20: O lava-pés e as respectivas explicações
Em Jo 13,1 inicia a II parte do Jo, o assim chamado o ―Livro da glória‖19.
v. 1. Serve como título de toda a narração da Paixão e, no sentido estricto, do tema do lava-pés; Logo a seguir podemos distinguir:
vv. 2-5: a acção de Jesus; vv. 6-11: o diálogo com Pedro e vv. 12-20: a instrução dos discípulos. Nas 3 partes é nomeado Judas (v.2; vv. 10 e 11 e nos vv. 18-19). Podemos ver nesta insistência, o dualismo joanino e a arte do evangelista em reforçar o elemento dramático da sua narração. Além disso são postos em oposição: o amor anunciado no v.1 e a pessoa do traidor, que simboliza exactamente o contrário do amor.
O c. 13 começa com uma indicação temporal/litúrgica e teológica: ―antes da festa da Páscoa‖, indicada como a ―hora da passagem de Jesus deste mundo para o Pai‖, sendo aí sublinhado o verbo ―amar‖.
Considera-se que a base para a narração do lava-pés seja Lc 22,27, onde Lucas faz referência a discussão entre os discípulos sobre quem é o maior e sobre o primeiro lugar. Em contraposição a este desejo, Jesus propõe o seu comportamento, pois ele está no meio deles como aquele que se levanta e serve. O ambiente cultural nos ajuda a perceber o gesto de Jesus: lavar os pés dos hóspedes era um serviço reservado aos escravos. Praticando esta acção, Jesus escolhe o último lugar. Esta mensagem conserva sempre a sua actualidade.
19 Há quem coloque o início da II parte em Jo 11,1. Mas em 13,1 começa verdadeiramente a história da Paixão no sentido estricto, onde Jesus se encontra apenas com os seus discípulos, a qual o autor interpreta como gesto do amor de Jesus pelos seus até ao fim, nesse caso os cc 11-12 podem ser considerados como dobradiça de ligação.
Nesta passagem, vemos que Pedro em João continua a ser o representante mais importante do grupo dos discípulos: dum lado, confessa a fé em Cristo de modo exemplar (6,68) e por outro lado, mostra também a fraqueza típica dos discípulos (sua negação ao Senhor 3 vezes em 13,35-38 demonstra isso).
A contínua referência a Judas nesta passagem serve para mostrar que Jesus tinha consciência do seu destino (isto é confirmado pela cena dos vv. 21-30). As forças do mal não agem sem que Deus as conheça e as veja. Pedro, representante dos discípulos é convidado a entrar na mente de de Jesus, na hora da sua paixão, mentalidade esta que é de amor e serviço.
Ao longo da história foram avançadas várias interpretações do gesto do Senhor Jesus, no lava-pés, sendo de destacar duas que tiveram maior consenso:
a. Interpretação moral (desde os Padres da Igreja em ligação com vv. 12-20): a acção de Jesus como modelo para o agir dos discípulos;
b. Interpretação cristológico-soteriológica (ligada à explicação dada a Pedro): Jesus interpreta com a sua acção a sua morte e a relevância dela para os fiéis.
O exemplo que Jesus nos dá continua sempre actual na Igreja de todos os tempos e lugares. Nota-se uma ligação entre o tema do serviço e da Ceia, como culto central dos cristãos, desde os primeiros tempos. Em Jo 15,12-17 o tema do serviço voltará a ser desenvolvido. A comunidade de João reflecte sobre o seu segredo mais íntimo e convida os seus membros a unir-se ao Senhor, que se tornou escravo, pronto a dar tudo pelos seus.
Jo 14,1-31: Primeiro discurso
Jo 14,1 e 14,27 constituem o início e o fecho do primeiro discurso com o convite a não ficar perturbados. Esta unidade está ligada ao c. 13 pelo tema da partida de Cristo. Esta partida eminente põe os discípulos à prova por isso que precisam de ser consolados.
São temas nos vv 1-4: preparação das moradas para os discípulos (discussão sobre escatologia presente ou futura); transição da morada para o caminho, sob influxo do Sl 42, pois este Salmo é ao mesmo tempo oração do justo sofredor e canto de um israelita longe do santuário de Jerusalém.
vv. 5-14: A partida de Jesus e a união com Ele; Estes versículos desenvolvem o tema da partida iniciado nos anteriores (vv. 10, 11, 12 predomina o verbo ―crer‖); os vv. 15-24 retomam o tema de ―retorno‖ de Jesus, oferecendo vários modelos para conceber esse retorno (ora, através do dom do Espírito/na partida de Jesus e este junto do Pai), com predomínio do ―amar‖, como expressão de união continuada de Jesus com os seus discípulos; nos vv. 25-31, os dois temas são retomados numa nova perspectiva (v.28).
O c. 14 é igualmente marcado pelo diálogo de Jesus com Tomé e Filipe (as perguntas destes têm a intenção de promover um discurso de revelação). No v.6 Jesus revela-se como ―EU SOU o caminho, verdade e vida‖. A estrutura do v. 6 é a mesma de outras palavras de revelação. As seis palavras de revelação iniciam com ―Eu sou‖ (8,12; 9,5; 10,7.11.14; 15,1).
Jo 14,15-24: condições da promessa de Jesus: ―amar a Deus e observar os seus mandamentos‖, comando este que é dos tempos de Decálogo (Ex 20,6; Dt 5,10) (ver tbem Dt 5,10; 7,9; 10,12; 11,1.13.22: 19,9 e 30,6.16.20 mas o texto principal é claramente o Grande Mandamento de Dt 6,4ss de amar a Deus, com observância dos mandamentos que se encontra em 6,1-3).
A promessa da vinda de um Paráclito como ―espírito da verdade‖ encontra seus fundamentos bíblicos em Ez 36,26, segundo o qual Deus dará a seu tempo o espírito santo. A designação do Espírito como ―outro Paráclito‖, fora dos escritos joaninos (Jo 14,16.26; 15,26; 16,7; 1Jo 2,1), não tem paralelos, excepto no judaísmo contemporâneo, onde os ―paráclitos‖ são pessoas ou instituições que vêm em socorro aos fiéis seja no sofrimento deste mundo, seja no juízo futuro.
O tema de Jo 14,15-24, o da vinda de Jesus e o Pai para habitar nos fiéis, está igualmente ligado a Ez 37,27. No fim deste capítulo, Jesus não convida mais os discípulos para as moradas celestiais, mas sim é Ele que, com o Pai, vai habitar nos fiéis.
No fecho do primeiro discurso em Jo 14,25-31: aparece como resumo do que foi dito no discurso propriamente dito pois voltam os temas dos vv. anteriores, a saber: o tema da promessa do Espírito (vv. 16.26); o tema do medo (v. 27); o tema da partida e regresso de Jesus (vv.2; vv.5-14; 15-24; 28); o tema do amor (15,21.23 retomado v.28) e o tema da fé (vv.1 e 10-12, retomado no v.29); aparecem igualmente novos temas, a saber: alegria (v.28) e a paz (v. 27).
Em relação aos temas de paz (16,33; 20.19.21) e alegria (16,20-22), raros em Jo, é preciso dizer que o autor se inspira na tradição bíblica (Rm 14,17, onde se diz que o Reino de Deus não é uma questão de bebiba ou comida mas sim justiça, paz e alegria no Espírito).
Os fundamentos bíblicos para o Espírito Santo como dom escatológico pode ser Ez 36,26 como testemunha da teologia da nova aliança, daí que os temas de paz, justiça e alegria têm como base as tradições proféticas de Israel para o futuro escatológico, sendo texto chave Is 61,1ss citado por Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18); outro texto messiânico é Is 10,1-10, todos eles radicados na ideologia do rei, visto como portador de um Reino de paz e justiça.
Jo 15,1-8: discurso intermédio: Eu sou a verdadeira videira
Depois de Jo 14, o texto tem sua continuação natural no c.18; os três capítulos intermédios (15-17) aparecem como uma adição.
vv. 1-8. Caracterizados pela videira e pelo verbo ―permanecer‖ com o objectivo de exortar os discípulos a permanecer fiéis a Jesus e à sua palavra, sendo que o problema já não é a partida, mas sim a ausência de Jesus com o perigo de perda da união vital com Ele e com a sua palavra.
Esta união é descrita com termos jamais usados no NT mas conhecidos no helenismo hebraico. No AT, temos textos que falam da videira como símbolo para o povo de Israel (Jer 2,21; Sl 80,9-20 e Os 10,1). Diferentemente destes textos bíblicos, João aplica a imagem a uma pessoa singular, Jesus como ―encarnação‖ do povo de Deus. Apesar das diferenças de outros textos citados, a imagem é sugestiva e evoca as grandes tradições de Israel. Por sua vez, a ideia de que o Pai será glorificado nos frutos que os discípulos levarão consigo encontra a sua preparação no tema da glorificação do Pai por Jesus, expressa em Jo 13,31ss.
Jo 15,9-17: discurso intermédio: O mandamento do amor
O amor fala-se nestas vertentes:
Vv. 9-11: permanência dos discípulos no amor de Cristo.
Embora Jo 15,1-17 não seja uma releitura do discurso de adeus anterior, entretanto encontram-se elementos repetidos em 13,31-35 e 14,1-31 e também há algumas mudanças assinaláveis. No centro está o mandamento de amar a Jesus e a pôr em prática os seus mandamentos (conceito este que vem da teologia da aliança). A este comportamento humano corresponde a promessa de ser amado por Deus.
vv. 12-17: O mandamento do amor mútuo é retomado totalmente de 13,34. Em Jo 15,12ss esse amor se exprime em dar a vida pelos outros. Os discípulos são agora tidos como ―amigos‖, conceito este muito aceite no mundo grego mas que aqui é especificado: ser amigo significa ser fiel aos mandamentos, fundamentando-se com o facto de que Jesus confiou aos seus discípulos tudo o que recebeu do Pai.
Sobre a possível origem do duplo mandamento de amor, temos estas duas vertentes: 1) primeira vertente, AT: amar a Deus sobra todas as coisas (Dt 6,4) (veja-se 1Ts 1,9: conduzir os fiéis a um só Deus vivo e verdadeiro); 2) Segunda vertente: amor ao próximo: Mc 12,28; Rm 13,8 ou Gl 5,14 e também 6,2. No Judaísmo, podemos citar Rabi Aqiba (sec. II) que diz que toda a Lei podia se resumir no amor ao próximo, preconizado por Lv 19,18. Portanto aquilo que se encontra em João é a fusão das duas versões do mandamento de amor, desdobrando-se em amar a Deus e aos irmãos.
Jo 15,18-16,4: discurso intermédio: O ódio ao mundo
O autor deixa de lado temas de Jo 15,1-16,4 e retoma os temas de Jo 14. De facto, a iminente partida de Jesus se torna, de novo, um tema principal. Além disso, são retomados temas do c. 14, tais como: o futuro novo encontro com Jesus (16,16); a infalibilidade da oração (16,23.26) e o tema da fé (16,30). Sobretudo em Jo 16,4b-33 recorrem temas escatológicos, já encontrados em Jo 14,25-28, a saber: o dom do Espírito Santo (16,7-15) e o dom da alegria (16,20-22) e da paz (16,33), bem como o tema da justiça na senda de Rm 14,17.
O ódio que sofrem os discípulos é visto como ódio do mundo. O mundo ama o que é seu e ele gosta; por causa da vocação por parte de Jesus, os discípulos não fazem mais parte do mundo.
vv. 15,16ss: terceira referência ao Paráclito tendo em comum com os ditos de Jo 14,16.26, só que aqui o Espírito da verdade tem uma missão direcionada ao mundo: assistirá os discípulos num conflito jurídico, dando testemunho a favor de Jesus (formula preferida por Jo 1,7.15; 5,31ss; 8,13s.18; 10,25).
16,1-4a: O texto sobre o ódio do mundo e a perseguição dos discípulos sofreu influência sinóptica (veja-se Mc 13,9-13), com diferença de que João fala do ódio não só de todos, mas do mundo, entendido como verdadeiro adversário de Jesus, isso por causa do ―meu nome‖(Jo 15,21). Em João desenvolve-se a ideia de que o ódio aos discípulos é também ódio a Jesus que os mandou.
Jo 16,4b-33: terceiro discurso
Neste discurso são retomados alguns temas importantes do primeiro discurso (13,31-14,31 ou 14,1-31, segundo alguns), tendo como ponto de partida a iminente separação do grupo dos discípulos. Isso tem como consequência: a tristeza dos discípulos (16,5-6) que depois é desenvolvida nos vv. 16-22, donde a seguir vem a promessa do Espírito Santo (cfr. 14,16ss.26).
Os vv. 8-11 descrevem as funções do Espírito Santo, sobretudo em relação ao mundo e 12-15, a função do mesmo em relação dos discípulos. 16,13-15: O Espírito sendo ―Espírito de verdade‖, introduzirá os discípulos em toda a verdade: com esse Espírito serão capazes de compreender o passado, presente e futuro. vv. 8-11: No que diz respeito ao sentido do verbo ―Elenkein‖ nos vv. 9-11, vários estudiosos preferem o significado de ―anunciar e denunciar‖, no sentido da Teologia da libertação. Jo 16,4b-33 é único texto joanino em que estão os 4 elementos juntos: justificação/justiça, paz, alegria no Espírito santo (cfr. Rm 14,17:). Podemos dizer então que no nosso texto, Jesus anuncia a vinda do Reino de Deus, proclamando a sua vinda como realizada (Jo 20,19-23) (veja-se também comentário a Jo 14,25-28).
Ainda no terceiro discurso, Jo 16,16-24 destaca-se o anúncio da tristeza e alegria. Nele está presente uma reflexão cristológica sobre a partida de Jesus e a reflexão sobre o estado de espírito dos discípulos, que ficaram sozinhos no mundo. Já nos vv. 20-22: primeiro são palavras sobre a tristeza dos discípulos, numa altura em que eles estarão tristes mas o mundo se alegrará, porém chegará o momento em que o luto lhes será tirado. Aqui faz-se recurso à imagem de uma mulher que deve dar à luz e sofre por causa das dores da maternidade mas depois se alegra por ter dado vida a um filho (v.21), assim a tristeza dos discípulos se transformará em alegria pois o Senhor os verá (não são eles que hão-de ver o Senhor!). Dos temas escatológicos de Rm 14,17 agora fala-se da alegria que os discípulos terão depois do sofrimento. Ao tempo do sofrimento dos discípulos se seguirá o tempo em que as suas lágrimas serão enxugadas dos seus olhos (cfr. Ap 21,3).
Na terceira parte do terceiro discurso (Jo 16,25-33) continua o tema da infalibilidade da oração, em nome de Jesus ―naquele dia‖ (v. 26). São também introduzidos novos temas como o falar de Jesus abertamente ou em parábolas, o tema da ―hora‖, o tema da dispersão dos discípulos e o conforto que Jesus lhes dá através da promessa da paz e victória. Com este conforto se fecha o discurso.
Jo 17: A última oração de Jesus
Este texto é chamado de ―oração sacerdotal‖, desde sec. XVI, por causa do contexto em que se situa, isto é, antes da Paixão e também por causa da ideia dos vv. 17-19 que Jesus se ―consagra‖ para os seus. Porém a ideia central é a revelação de Deus que Jesus cumpre nesta hora. Localizada no final dos discursos de ―adeus‖, mas com poucos contactos com eles, porém com temas como a ―chegada a hora de Jesus‖ (cfr. também 13,1). Essa hora é hora de glorificação do Pai por Jesus, mas também da glorificação de Jesus por parte do Pai. A oração da unidade para os seus (c. 17) corresponde ao mandamento de amor uns aos outros (Jo 13,34/7,26). Ao amor de Jesus no início (13,1) corresponde aquele do Pai no fim (17,26). A primeira e última sessão se correspondem, tanto em v.1 e como no v. 24, Jesus se dirige ao Pai.
Porque razão o tema da unidade se torna tão importante no final dos discursos?
Os autores explicam este facto tendo em conta a situação da comunidade joanina depois do período pós-apostólico. A controvérsia com o judaísmo, nesta altura, não é o maior perigo: depois da expulsão dos cristãos da sinagoga (Jo 16,2), o perigo vinha provavelmente das autoridades romanas, mas o perigo mais grave ainda vinha de dentro, da ameaça da heresia e da destruição da unidade eclesial, daí a importância da oração pelos cristãos.
Numa leitura diacrónica, Jo 17 tem proximidade com Mc 14,26, (palavras recitadas por Jesus no final da última ceia), o que faz com que alguns autores vejam nisso a recitação do ―Grande Hallel‖, do final da celebração da Páscoa hebraica. Também em Jo 17, encontram-se elementos da oração de Jesus, no jardim das oliveiras. Há igualmente orações dirigidas ao ―Pai‖ em Mc 14,34 ―ABBA, Ó PATER‖; à referência à hora que veio (Jo 17,1; Mc 14,35). João refere igualmente a cena da oração de Jesus no Getsémani, mas antecipa esta cena no texto de Jo 12,27. Em Jo 17 permanecem estes conceitos ligados à oração de Jesus no Jardim, integrados num novo contexto, com um Jesus muito seguro de si mesmo unicamente preocupado pelos seus. A ―Hora de Jesus‖ como hora da sua morte e exaltação tem o influxo do servo de IHWH em Is 52,13-53,12. Vimos essa ligação já em Jo 13,31.
Considerações finais
Da análise feita à secção Jo 13-17, portanto, da última noite de Jesus com seus discípulos, podemos chegar à conclusão de que através dessa passagem que marca o início da sua Paixão, Jesus deixou-nos o seu testemunho mais profundo, seja através de discursos, seja através do serviço humilde do lava-pés ou mesmo pela sua preocupação pelos seus discípulos expressa de forma mais eloquente na oração de Jo 17. A tentação de negar Jesus, de subverter a sua doutrina ou mesmo de prejudicar a unidade da fé e da Igreja são um perigo constante e de todos os tempos: cabe ao leitor ou fiel do século XXI trabalhar com afinco pela unidade não só dos cristãos e pelo amor, pela paz, pela justiça, de modo a que tenhamos um mundo mais humano, pelo qual Jesus rezou e se ofereceu.
Perguntas de reflexão:
1. Indique os principais desafios para a fidelidade a Cristo e para a vivência cristã no tempo actual;
2. Que caminhos o cristão e as comunidades cristãs devem propor para se alcançar a Paz que Cristo nos dá, diferente daquela que o mundo nos apresenta?
3. Na última noite de Jesus com seus discípulos, Ele rezou pela unidade dos discípulos e da Igreja. Como avalia o estágio actual da nossa unidade como Igreja?
Referências bibliográficas
BAUER, Johannes B. (1988). Dicionário de Teologia bíblica (2 vols) S. Paulo: Loyola.
BEUTLER, J. (2001). Jesus in Johannine tradition. London: Westminster John Knox Press.
BIGUZZI, Giancarlo. Introduzione al vangelo di Giovanni, alle lettere di Giovanni e al Apocalisse, in www.gliscritti.it/blog/entry.
CORTÈS, E. (1976). Los discursos de adiós de Gn 49 a Jn 13-17. Pistas para la historia de un género literario en la antigua literatura judía. Barcelona.
LEON-DUFOUR, X.(1993). Lecture de Évangile selon Jean III. Les adieux du Seigneur (chapîtres 13-17). Paris: du Seuil.
SIMOENS, Y. (1981). La gloire d‟aimer. Structures stlistiques et interprétatives dan le discours de la Cène. Roma: BIP.